Hélia Correia. “Não mando nada. De vez em quando aparece um texto”

Hélia Correia. “Não mando nada. De vez em quando aparece um texto”


Entrevista da escritora ao i, em Março de 2013. 


Surgiram muitos desde os quatro anos, quando se abria a porta a uma história de acasos felizes que só podia dar em poesia. Maria Ramos Silva falou com a vencedora dos prémios Correntes d’Escritas e Vergílio Ferreira.

{relacionados}

Os registos de 1949 não estavam para ousadias. O progressismo fê-la nascer na maternidade mas não chegou para a baptizar como previsto: Maria da Liberdade. A mãe vingou-se com Hélia, o nome mais invulgar que conhecia, a única causalidade numa vida de acasos felizes, curta de mais para permitir estados de alma de anciã. Em cada gesto continua a trepar às árvores da infância e a empoleirar-se nas varandas que davam vista desafogada para o saber, talvez porque ser aluna já era a condição favorita de uma aprendiz que mesmo sem querer desperta em cada leitor um aluno.

Sugeriu-nos a Gulbenkian. À sabedoria dos “gregos e dos gatos” junta-se a das árvores?

É, a natureza é realmente a minha companhia ideal. Mas é mais uma questão física que filosófica. Também em termos espirituais, porque sou meio animista ou panteísta. Preciso daquele modo de vida que é o não humano. Para mim tudo é ser vivo.

Falava do refúgio em Sintra, é o seu pequeno oásis?

A verdade é que é o único lugar de Portugal onde consigo viver bem e respirar. Além de ser um lugar carregado de história, sombras e literatura. Às vezes digo que se me fechassem os olhos e me fizessem descer em Sintra saberia que estava em Sintra.

Acaba por ser uma lisboeta acidental?

Lisboeta acidental, sim. Sou lisboeta porque vim nascer à maternidade, coisa que não era frequente para os meninos da minha idade. A minha família e o meu médico confiavam muito na ciência. Faziam questão que as crianças nascessem nas maternidades. No meu caso foi vital porque não teria sobrevivido.

Progressistas e providenciais, então.

Sim, bom, mas a minha irmã não teve problemas nenhuns, era muito mais velha que eu e já nasceu na maternidade. Era mesmo uma questão de afirmação de atitude perante a ciência médica.

De onde vinham?

Somos de Mafra. É também um microclima bastante agressivo e habituou-me, a mim e a todos os meus amiguinhos, a lidar com os elementos de uma forma descontraída. Andávamos na rua, apanhávamos imensa chuva, nunca ninguém se constipava. Até hoje continuamos a apanhar chuva. Em pequena ia trepar a uma árvore para arranjar um ângulo de mira muito especial para conseguir ver a serra de Sintra. Era uma paixão.

Quando vem para Lisboa?

Vim para o meu sexto ano, hoje décimo. Já não havia mais estudos em Mafra. Quem queria continuar tinha de vir para Lisboa.

Sentiu algum choque?

Não, eu ansiava por Lisboa. Nas férias já vinha muitas vezes para casa da minha irmã. Tinha assim umas febres estranhas e quando vinha para Lisboa desapareciam. Ela trabalhava e deixava-me sozinha durante o dia, o que eu adorava. Deliciava-me o anonimato. Tinha pavor de vir para o liceu em Lisboa porque sabia que eram separados em termos de género. Isso era uma ameaça para mim, que tivera uma educação não sexista; sempre brinquei com rapazes, andei num colégio misto. Misturavam-se na minha cabeça liceus femininos e conventos de freiras, porque havia uma ou outra menina de Mafra que andava num convento e faziam-me descrições aterradoras.

Via-se a regredir?

Era muito assustadora a ideia. Felizmente vim para um liceu feminino excepcional. Tínhamos muito convívio com rapazes, era perto do D. João de Castro, onde havia turmas mistas. Era um liceu meio encantado, embora houvesse problemas políticos graves. Era o Palácio dos Câmaras, que se tinha transformado em liceu; com escadas por onde não se podia subir, portas fechadas. Tinha colegas muito criativas que tiveram muita importância para mim, como a Maria Filomena Molder, a Maria Fernanda de Abreu. A transição foi feita suavemente. O liceu era encantado e eu vinha de uma educação selvagem.

Tinha alunas encantadas também?

[Risos.] Também tinha. Imprimi desordem naquilo. Eu vinha da minha prática de territórios livres, ia para onde queria, fazia explorações no Convento de Mafra. Quando vi portas fechadas, claro que não me resignei. Uma das portas que se arrombaram com a minha liderança deu-nos acesso a salas que ainda tinham alguns móveis e frescos do tempo em que os Câmaras lá moravam. Foi assim uma sensação de que ainda havia ali outro mundo. Foi uma altura muito forte. Muitos colegas eram católicos progressistas e tudo isso era associado a espectáculos que fazíamos, de dança, música, teatro. Tivemos direito a baile de finalistas.

E direito a par?

Sim, com rapazes. No baile tivemos um conjunto a tocar.

Que conjunto era esse?

Os Sheiks. [Risos.] Estavam no princípio. Dá para ver que não era um liceu feminino comum. Aprendi também a respeitar pessoas de outra classe, filhas de ministros, uma condessa, gente com grandes nomes, que em Mafra estariam não só no lado oposto como teriam atitudes persecutórias. Consegui desligar as pessoas da sua condição social, porque eram admiráveis. Foi uma grande conquista.

Nesse tempo já escrevia?

Escrevo desde os quatro anos. Sempre escrevi.

No entanto já disse que não tem uma obra, mas sim um conjunto de textos que são fruto do acaso.

Sim, eu não mando nada. De vez em quando aparece um texto e quando a preguiça lhe cede – porque muitas vezes aparecem textos e eu consigo não os escrever – eles são escritos. Não há um projecto de obra e muito menos uma carreira, que implica um projecto social da integração dessa obra no percurso. Não vejo nada disso. Tive uma profissão na vida, que foi a minha vocação de sempre, de professora. Aí se quiser poderia ter entrado numa carreira, que também não quis, porque queria era dar aulas aos meninos a seguir ao básico, os que melhor se associavam comigo na liberdade da imaginação.

Mas a via do ensino já foi uma escolha mais consciente?

Nunca tive outra hipótese. Em pequena morava mesmo ao pé de uma escola e fazia birras para comer. Um dos recursos da minha mãe era pôr-me à janela  à hora da saída da escola para me distrair. Queria ser professora. Era a mais nova do grupo e quando os outros estavam nas aulas eu não tinha o que fazer. Para me distrair comecei a trepar a uma varanda dessa escola para assistir à aula de uma professora linda. Uma aula para mim era um encantamento e eu queria ser aquela mulher. Depois por sorte foi a minha primeira professora, a D. Leonor. Bom, mas com seis anos o médico diagnosticou-me um esgotamento e proibiu-me de ir para a escola.

Um esgotamento?

Sim, porque há outra história. Aprendi a ler sem querer. Na altura em que o Inverno era mais duro íamos todos para o sótão de uma das meninas do meu grupo, onde havia carteiras e quadros de escola. Ela fazia de professora e nós éramos alfabetizados. Ela escreveu qualquer coisa e eu descodifiquei. Aprendi a ler e a escrever assim.

Quando muitos miúdos fazem de tudo para faltar às aulas, a Hélia arranjava forma de as reforçar.

Gostava muito de aprender, e depois com aquela história do esgotamento tive de entrar na primeira classe com sete anos; havia uma lei que o permitia. A professora trocou-me o livro e deu-me a matéria toda da segunda classe junto dela, na secretária, enquanto dava a matéria da primeira classe ao resto da turma. No segundo ano deu-me a matéria da terceira. Depois veio outra professora na terceira classe, que tinha muito medo de me ter na aula.

Que medo?

Que eu adoecesse e tivesse novo esgotamento [risos]. Mandava-me fazer recados, coisa que eu detestava. Lá ia eu sozinha. Havia muitos alunos bons mas eram de uma classe com mais poder económico, já não estudaram em Mafra. Olhavam–me de modo especial porque eu emergia daquele meio. Os meus pais eram pobres. Eram pessoas muito cultas mas tinha havido ruínas na família; eram da oposição, como muitos dos amigos, de médicos a merceeiros. De certo modo havia um perfilhamento. Era como se um fosse filha deles todos.

Era um orgulho comunitário?

Era, uma espécie de compensação, ou alguma vingançazinha. Como se no nosso meio também fosse possível conseguir isso. Mesmo quem não estivesse abençoado pelos padres e pela Igreja podia chegar ali.

Essa devoção familiar pelo progresso científico não colidiu com o seu percurso nas letras?

Havia essa devoção, mas também uma grande devoção pela literatura. Era uma coisa do quotidiano. Eu conheci “O Monte dos Vendavais”, que é o meu livro preferido, ainda antes de o conhecer, porque se havia um temporal não se falava do temporal mas do monte dos vendavais. Havia sempre referências. Aliás, quando a família empobreceu e o meu pai deixou de comprar tantos livros, os amigos compravam-nos. Na altura implicava abri-los com um corta-papéis. Então davam-lhe os livros para ele abrir, a fingir que não tinham paciência para abrir. E ele, claro, abria e lia.

Como chegou à Filologia Românica?

Nunca tive de fazer opções na vida. As Românicas aparecem porque quem preencheu as minhas folhas foi a minha professora de Inglês, que ainda hoje vive, a Dr.a Luísa Barros. Nem me perguntou o que achava. Foi tão natural…

E quando é que a cultura grega invade o seu território?

Foram muitas portas que se abriram. Eu sempre tive a paixão da dança. Essa não realizei, mas pronto. Desde pequenina dançava muito. Entretanto fui parar à Isadora Duncan, uma das mulheres da minha vida, que era uma grande militante da Grécia. Depois mistura-se com a Sophia. As coisas vão formando uma arquitectura; não sabemos bem dizer quando aparecem. Agora houve um factor que tem uma causalidade muito nítida, que é o facto de no meu sexto ano ter aulas de Grego.

É a língua que a leva à Grécia país?

Fui muito mais tarde. Ir lá não ajudou à minha relação com a Grécia. Tive um professor, grande helenista, o padre Manuel Antunes, que era um deslumbramento. Foi meu professor de História da Cultura Clássica.

Essas referências acabam por contaminar não só os livros como o seu discurso. Quando interveio nas Correntes d’Escritas comparou o evento com uma espécie de ágora grega, um bom epicentro para a revolução.

É, é um momento em que se experimenta o gosto pela palavra, que nós perdemos completamente, há muito tempo. A palavra foi tão proibida que esse prazer de ir despojando, pensamento atrás de pensamento, se perdeu muito. Era bom que voltasse. O Correntes foi-se afirmando, marcando a sua personalidade, e neste momento aprecia-se mais qualquer oportunidade que apareça.

Recusando a ideia de obra, como convive com estes prémios, como o das  Correntes e o Vergílio Ferreira?

Quando me vejo com perplexidade vou para os gregos. Os gregos tinham prémios, lutavam por eles, gostavam de os receber e de os ver atribuídos. Os prémios são coisas absolutamente aleatórias; este género, dado por pares ou por uma instituição que é um foco de cultura e insurreição, como a Universidade de Évora, não pode tornar–se motivo de cobiça, nem frustração ou expectativa. É um encontro de acasos. Não há nenhum merecimento que me diferencie de outras pessoas. Não sou Deus para me negar a recebê-lo, porque Deus temos um na nossa literatura e chega-nos, que recusa todos os prémios com o halo da sua divindade. Não vou recusar aquilo que entendo como uma oferta de gente de bem. São amigos queridos que me fazem sentir como aquela criancinha a quem o adulto sorri e pisca o olho.

Continua a gostar de recuar ao seu instinto mais infantil?

É, para tudo tenho dois recursos. Ou vou para a Grécia ver a origem da palavra, ou me mantenho entre os três e os oito anos e não saio de lá [risos]. Não vivemos assim tanto tempo que possamos aspirar a tornar-nos sábios. A vida é muito poucochinho. Quando me lembrei que se calhar devia crescer pensei que já não valia a pena. Poupa-me às constrições da sociedade, que abrangem a tal questão de carreira. Digo que fiquei nos oito anos porque fiz um desenho com essa idade que é exactamente o mesmo que faço hoje. É uma casinha, um cogumelo, um rio, uma trepadeira…

A chamada desse mundo de fantasia era inevitável nos livros, onde o banal se encontra com o extraordinário?

Não quero que me confundam com uma pessoa meio ingénua, que anda pelo mundo sem qualquer espécie de troca. Passo a vida a aprender e a tentar aprender o que não consigo; essa parte das ciências, da teoria da relatividade, da quântica. Ser aluna é o meu estado favorito. Agora mudar conforme a camada de conhecimento que se adquire é que é um processo que não faço. Até porque quanto mais nos aproximamos de um conhecimento fundo mais nos aproximamos do chamado conhecimento mágico da infância. Isso é fascinante. Os adultos são muito aborrecidos. Desde pequenina, o único adulto com quem falava era o meu pai. É engraçado que os adultos me aborrecessem, e continuam a aborrecer [risos].

Contraria a ideia de um certo fascínio que as crianças têm pelos adultos.

Ah, não. Não quer dizer que não adore as pessoas, mas vou sempre trocando as gerações. Estou com os filhos dos meus amigos, depois eles crescem e eu largo-os; depois eles têm filhos e eu pego neles, e há-de ser assim sucessivamente. Vou sempre ficando com os pequeninos. Com eles é possível voar completamente, e têm uma exigência de lógica feroz. É uma lógica, mas tão criativa que é muito sedutora. A adolescência é um fascínio também. Com os adolescentes já tenho a função de traduzir o mundo deles para o dos pais e vice-versa.

Uma tradutora do mundo que deixou de traduzir livros. Porquê?

Ah, isso foi um disparate completo. Apaixonou-me e ninguém me consegue demover, mas não estava preparada para traduzir. Não basta escrever. Foi um sofrimento e uma irresponsabilidade. Parei quando estava a traduzir o “The Celtic Twillight”, do Yeats, que me era familiar até. Tinha-o mesmo por cima do ombro a espreitar. Nunca mais.

Não sendo a escrita sistemática, não chega sequer a ser pretexto para se refugiar do mundo dos adultos?

Não, a leitura foi refúgio durante muito tempo, justamente para isso. Lia muito, sem vigilância; livros despropositados para a idade, que me repugnaram, como os dos Victor Hugo ou do Júlio Verne. Mas isso foi antes de encontrar aquilo que é a essência do livro, a escrita literária. Aí já não ia viver as aventuras do livro mas sim viver o texto. Começou muito com o texto poético, depois a prosa. Quando estou a escrever não é para nada.

Mesmo quando a história a incomoda a preguiça tenta vencê-la?

É ver quem ganha. Já me senti muito melhor com essa preguiça do que agora. Tive um encontro com uma pessoa importante, nem há 20 anos, que me dizia que escrevesse; que tinha um dom que não podia ignorar. Essa voz está-me sempre no ouvido. Não posso ter um poema na cabeça e não o passar a papel. Tenho muitas vozes na cabeça, como a da professora Maria Helena da Rocha Pereira na primeira vez que fui a Atenas. Quando vou à Acrópole não quero ouvir a voz de mais ninguém, como aqueles guias com os apitos [risos].

Que voz a levou a editar pela primeira vez, no início dos anos 80?

Comecei a publicar em jornais, páginas literárias, juvenis. Estava em casa de uns tios que tinham a recomendação de estar em cima do que eu fazia. Foi praticamente o meu tio, que não era biológico mas um grande amigo da família, que enviou trabalhos para o Mário Castrim. O primeiro livro nem sei bem. Sei que o editor ligou ao meu namorado e queria publicar pela primeira vez uma pessoa que nunca tinha visto. Lá fui eu, num dia em que houve um tremor de terra, nunca mais me esqueço. Enfim, não era preciso dar-me a conhecer. O texto é o texto e segue o seu caminho.

Não é “pombo-correio que leva algo na anilha”, como já disse.

O pombo-correio tem o trajecto marcado, o livro não. Também não mando mensagem nenhuma no livro. Faz-me impressão usar o texto seja para o que for.

Para que servem então os poetas em tempos de indigência, como recupera de Hördelin em “A Terceira Miséria”?

É um caso diferente. Foi escrito com uma intenção social muito forte, reconheço neste texto uma utilidade de pré-texto, embora o andamento das palavras se determine a ele mesmo. No entanto, o que o poema contém são interrogações e evocações de um tempo que tomo como inspiração: não contém respostas. Não sei para que servem os poetas. E a nossa indigência, sendo essa de que fala Hölderlin, a espiritual, é também, entre nós, indigência política, económica e cívica. Muito se disse já sobre o poder da escrita ou a sua impotência. A declaração de Sophia de Mello Breyner na sua “Arte Poética III” devia andar de novo no nosso bolso. Não acredito muito na sua verdade mas acredito inteiramente na sua beleza. E a beleza é uma orientação.

Falta beleza?

Este nosso Ocidente está feio, muito feio, à sua maneira, de maneira diferente da dos outros lugares. Para onde quer que olhemos vemos essa indigência que é a falta de beleza. E a falta de beleza leva à doença. Não resisto a relembrar os Gregos, que eram poetas e guerreiros sem contradição. A pedra tumular de Ésquilo assinala que ele fez fugir os persas na batalha: sobre o tragediógrafo, não fala. Hoje em dia há muito mais semelhanças com a guerra entre gregos e persas do que pode parecer a olhos distraídos.