O discurso da justiça: ruído e frustrações


A construção de um sistema de justiça moderno e democrático exige uma grande contenção de propósitos e discursos.


1. Há dias, a MEDEL – associação de magistrados europeus – comemorou em Atenas os seus 30 anos. Procurou homenagear aí a pátria da democracia, a vontade livre dos cidadãos e o respeito devido às leis por eles aprovadas.
Os relatórios que então foram divulgados sobre as diversas situações dos sistemas judiciais europeus não revelaram, todavia, perspectivas encorajadoras quanto às possibilidades actuais de fazer honrar o estado de direito.

Da situação de extrema penúria orçamental de que – pasme-se – padece a justiça belga, passando pela denúncia de infiltração do sistema judicial romeno pelos serviços secretos e acabando na situação tenebrosa da Turquia, em que vários juízes e procuradores que investigavam casos de corrupção de governantes e ex-governantes acabaram demitidos e presos, de tudo um pouco se foi ouvindo nesse fórum. 

A justiça não parece pois merecer os favores de alguns regimes que se reclamam da democracia e do respeito pelo rule of law.

2. Portugal, apesar dos problemas graves que atingem a sua justiça – sei-o agora melhor, por quotidianamente lidar com outros modelos – conta com um dos sistemas mais equilibrados, tanto no que respeita ao conjunto de garantias processuais, como no que se refere à independência e à idoneidade dos seus órgãos e profissionais.

Esse equilíbrio foi sendo construído desde o 25 de Abril, com sabedoria e extremo cuidado, por governantes, parlamentares, académicos, magistrados, advogados e juristas que prezavam a democracia, o equilíbrio de poderes e o Estado de direito. 

Essa construção não esteve isenta de tensões, perigos e contradições, mas com sobriedade, ponderação e a experiência dos que sempre se haviam empenhado na defesa das ideias democráticas  mesmo quando isso significava um risco pessoal – foi possível ir afirmando um sistema coerente, de garantias judiciais e processuais que ainda hoje causa inveja aos juristas de muitos países de democracias antigas.

Tal processo exigiu de todos uma permanente contenção de propósitos e discursos, e sobretudo a capacidade de distinguir o que era a expressão de uma vontade política na afirmação de um sistema de justiça moderno e democrático do que era – apesar das peripécias – o exercício quotidiano e legalmente justificado da própria justiça.

Foi assim possível ir construindo um discurso adequado à função judicial – e a quem a servia –, que incluía, em todas as circunstâncias, a mesma preocupação de rigor e serenidade, mesmo ou sobretudo quando tinha de ser usado para a sua defesa ou crítica institucional e política.

3. Seria, com efeito, na sobriedade, na clareza e na inteligibilidade das palavras que iria residir afinal o traço distintivo de expressão da justiça; aquele que legitima, em todas as circunstâncias e palcos, a sua intervenção e – sem excepção – a de todos os seus profissionais.

Há uma lógica própria no procedimento e no discurso das gentes da justiça, que não pode por isso e em caso algum ser subvertida por ruídos externos e internos, por estratégias subjectivas ou ocasionais, nem por ambições ou frustrações pessoais de qualquer tipo. Para exprimir tais fenómenos, sobram outros e mais ajustados discursos.

O discurso específico da justiça não pode pois deixar-se assimilar e desordenar pelas adversidades, pois é precisamente por causa delas, e para as superar e resolver, que existe e se quer diferente, autónomo e disciplinador.
Quando assim não sucede, quando tudo parece confundir-se, soçobra a justiça e vencem afinal aqueles que, por muitas razões, não a podem suportar. 

Escreve à terça-feira   

O discurso da justiça: ruído e frustrações


A construção de um sistema de justiça moderno e democrático exige uma grande contenção de propósitos e discursos.


1. Há dias, a MEDEL – associação de magistrados europeus – comemorou em Atenas os seus 30 anos. Procurou homenagear aí a pátria da democracia, a vontade livre dos cidadãos e o respeito devido às leis por eles aprovadas.
Os relatórios que então foram divulgados sobre as diversas situações dos sistemas judiciais europeus não revelaram, todavia, perspectivas encorajadoras quanto às possibilidades actuais de fazer honrar o estado de direito.

Da situação de extrema penúria orçamental de que – pasme-se – padece a justiça belga, passando pela denúncia de infiltração do sistema judicial romeno pelos serviços secretos e acabando na situação tenebrosa da Turquia, em que vários juízes e procuradores que investigavam casos de corrupção de governantes e ex-governantes acabaram demitidos e presos, de tudo um pouco se foi ouvindo nesse fórum. 

A justiça não parece pois merecer os favores de alguns regimes que se reclamam da democracia e do respeito pelo rule of law.

2. Portugal, apesar dos problemas graves que atingem a sua justiça – sei-o agora melhor, por quotidianamente lidar com outros modelos – conta com um dos sistemas mais equilibrados, tanto no que respeita ao conjunto de garantias processuais, como no que se refere à independência e à idoneidade dos seus órgãos e profissionais.

Esse equilíbrio foi sendo construído desde o 25 de Abril, com sabedoria e extremo cuidado, por governantes, parlamentares, académicos, magistrados, advogados e juristas que prezavam a democracia, o equilíbrio de poderes e o Estado de direito. 

Essa construção não esteve isenta de tensões, perigos e contradições, mas com sobriedade, ponderação e a experiência dos que sempre se haviam empenhado na defesa das ideias democráticas  mesmo quando isso significava um risco pessoal – foi possível ir afirmando um sistema coerente, de garantias judiciais e processuais que ainda hoje causa inveja aos juristas de muitos países de democracias antigas.

Tal processo exigiu de todos uma permanente contenção de propósitos e discursos, e sobretudo a capacidade de distinguir o que era a expressão de uma vontade política na afirmação de um sistema de justiça moderno e democrático do que era – apesar das peripécias – o exercício quotidiano e legalmente justificado da própria justiça.

Foi assim possível ir construindo um discurso adequado à função judicial – e a quem a servia –, que incluía, em todas as circunstâncias, a mesma preocupação de rigor e serenidade, mesmo ou sobretudo quando tinha de ser usado para a sua defesa ou crítica institucional e política.

3. Seria, com efeito, na sobriedade, na clareza e na inteligibilidade das palavras que iria residir afinal o traço distintivo de expressão da justiça; aquele que legitima, em todas as circunstâncias e palcos, a sua intervenção e – sem excepção – a de todos os seus profissionais.

Há uma lógica própria no procedimento e no discurso das gentes da justiça, que não pode por isso e em caso algum ser subvertida por ruídos externos e internos, por estratégias subjectivas ou ocasionais, nem por ambições ou frustrações pessoais de qualquer tipo. Para exprimir tais fenómenos, sobram outros e mais ajustados discursos.

O discurso específico da justiça não pode pois deixar-se assimilar e desordenar pelas adversidades, pois é precisamente por causa delas, e para as superar e resolver, que existe e se quer diferente, autónomo e disciplinador.
Quando assim não sucede, quando tudo parece confundir-se, soçobra a justiça e vencem afinal aqueles que, por muitas razões, não a podem suportar. 

Escreve à terça-feira