Nuno Morais Sarmento, ex-ministro de Durão Barroso e, depois, de Santana Lopes, recebeu-nos em sua casa, na Estrela, e foi de costas para as duas fotografias dos ex-primeiros-ministros – que tem, lado a lado, numa das estantes do escritório – que falou ao i do que o separa de Cavaco ou de Passos Coelho, “tão parecidos”, ou do “futuro difícil de Paulo Portas”, com ou sem coligação PSD-CDS no governo.
Em dia de condecorações [a entrevista foi no 10 de Junho], também distribuiu medalhas, uma delas ao “patife” do Jorge Jesus. A Manuel Maria Carrilho, mais do que uma medalha, estava capaz de atribuir um selo, uma raiva que quando era novo aprendeu a serenar com a prática desportiva do boxe.
Aos 54 anos, Morais Sarmento tem hoje outros prazeres, mais calmos, como tem outra relação com o poder, acredita.
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Lá em casa ainda mostra quem manda, mas nem por isso lhe reconhecem autoridade, pelo menos a avaliar pela reacção de “Cusca”, a cadela, ou “Smartie”, a gata preta que os filhos Francisco e Madalena encontraram ferida na rua e não resistiram a levar para casa, já lá vão uns anos.
Queria começar por analisar o discurso do Presidente da República, ouviu?
Não. Ouvi o de abertura e achei de uma pobreza franciscana. Já ouvi António Barreto ou Sampaio da Nóvoa fazerem intervenções no 10 de Junho. Agora, esta senhora [Elvira Fortunato] parecia uma criança de liceu, a menina da turma escolhida para ir ler um papel ao senhor Presidente da República.
Cavaco disse que nunca vendeu ilusões, mas que não contem com ele para semear pessimismo.
Está na hora de fazer balanço. Já vi tantas pessoas fazerem isso – principalmente quando têm uma história com densidade e significado –, que é ter a preocupação de deixar a sua versão, de se justificarem. Lembro-me de estar no governo e ter à minha frente Jardim Gonçalves a contar como tinha sido o fim do Banco Pinto & Sotto Mayor. Eu conhecia o processo porque tinha estado indirectamente envolvido e até lhe disse isso. Mas ele continuou a história. Não estou a dizer que estivesse a contar uma mentira, mas pegando numa parte da história podemos contá-la de formas diferentes. E é engraçado porque, no fundo, ele estava a dizer como queria que o momento fosse recordado.
Cavaco quer justificar-se, deixar a sua versão?
Tem aí os roteiros todos, mas tenderá a fazer isso. Sampaio fez a mesma coisa, todos fizeram. Eanes não fez, mas era um Presidente praxis – na altura, hoje é um homem com uma densidade muito diferente daquela que as pessoas lhe recordam. É normal que o Presidente da República (PR), à medida que se aproxima o final do mandato, tente sublinhar as coisas como foram na sua visão, até para corrigir aquilo que ele dirá que são as imperfeições da leitura mediática ou política que, na sua opinião, terão dado sinais que não são correctos como, por exemplo, se apoiou ou não o governo. É isto que teremos até ao fim.
A par de uma campanha legislativa.
Sim, e aí não vamos falar do passado, vamos falar do presente e de uma situação difícil, que é de uma maioria, ausência de maioria, coligações, acordo de regime… O Presidente da República já foi protagonista na definição do calendário duas vezes, condicionando muito tudo o que vai acontecer. Com riscos. Nunca achei sensato este calendário, mas conheço Cavaco Silva o suficiente para saber que é um homem com uma leitura muito institucional e, para ele, cumprir calendário constitucional e calendário da República é muito importante.
Quais são os riscos?
Vamos ver, o Presidente da República diz: quero que as eleições legislativas aconteçam em Outubro. A seguir acrescenta: encaro como uma probabilidade forte que as eleições não resultem numa maioria clara. Em terceiro afirma: nessa circunstância, não darei posse a um governo – nunca esclareceu se falava de uma maioria de governo ou de apoio parlamentar, penso que terá de ser uma maioria de apoio parlamentar. Estas três coisas são uma contradição nos seus termos, porque nessa altura o PR, como sabemos, estará nos seis meses finais, terá os seus poderes constitucionalmente limitados. A própria circunstância de haver eleições limitaria em qualquer caso a capacidade de intervenção no período antes e depois. É uma altura em que o Presidente que diz não é impotente para agir em cima disso. Não penso que o PR admita – mas, em bom rigor, é uma possibilidade – que o país fique quatro, cinco meses ou até ao fim do seu mandato sem eleições e com um governo de gestão. É impensável. Mas também disse que é preciso que os partidos se entendam. Já em 2013 andava de volta da necessidade de haver um acordo.
Mas os partidos nunca se entenderam…
Eu posso ir aí, mas falando de 2015 e de 2016, o que digo é que o PR não está aqui como apologista da teoria do caos. Isso era não lhe fazer justiça. Tudo isto aconselhava a que o Presidente determinasse eleições antes do Verão, ou seja, antes do período do final do seu mandato. E o argumento institucional faz-me muita confusão, porque o Presidente admitiu a realização de eleições em 2014. Em 2013, na famosa crise, em determinado momento, o PR disse a António José Seguro, faça um acordo e teremos eleições em 2014, depois da saída da troika. Admitiu a interrupção do calendário normal. Dirá o Presidente que a crise o impunha e, pela primeira vez, o benefício de ter um acordo de regime sólido o justificaria, coisa que agora não acontece. Mas, na prática, o que ele tem de perceber é como o país vê as coisas e não como ele as vê, na tal leitura que quer que fique na história. Porque não é só uma circunstância indefinida em relação às legislativas, no meio disto temos as candidaturas presidenciais. E gostaria que os candidatos me dissessem ao que vêm, qual a sua visão de país, o que querem para a arquitectura-base – porque é para isso que o Presidente da República tem de olhar, para a Constituição, o sistema político, legislativo, estratégico, nas matérias em que é chamado mais directamente. Se se apresentarem depois de Outubro, já só vão responder a uma pergunta: se davam ou não posse a este ou aquele. O calendário eleitoral não devia ser este, é um erro.
Cavaco tentará justificar aquilo que julga terem sido as imperfeições do mandato vistas por ele. Quais são, na sua perspectiva, as imperfeições do mandato do Presidente da República?
Um balanço faz-se no fim, seria incorrecto fazê-lo nesta altura. Há imperfeições, há-as sempre.
O Presidente da República devia ter mais poderes?
É uma questão artificial, reduzir a discussão a isto é básico. Quando o professor Cavaco Silva se candidatou à Presidência, com incompreensão de muitos cavaquistas – que quando não percebem acham que deve ser um ataque –, eu disse que era altura de fazer um balanço. Se olharmos para os indicadores civilizacionais, demos um salto incrível. Mas a democracia também revela um lado negativo, que não são problemas de governo, senão já teriam sido resolvidos, porque já lá estiveram governos de esquerda e de direita. São problemas do país. Temos um desenho de sistema político que é Benfica-Sporting: o governo de per si nunca arranja a sinergia necessária para qualquer coisa verdadeiramente nacional. Não arranca, nem que tenha maioria.
E a sua sugestão era?
Há dez anos, eu dizia que era altura de o Presidente da República não voltar a sê-lo apenas para repetir a volta pelas aldeias e freguesias do país, mais as visitas diplomáticas, mais as crises dos governos à quinta-feira em Belém, mas para procurar, para lá desses serviços mínimos, chamar a si esse lado negativo. Em vez de continuarmos a queimar governos à espera que resolvam problemas que não são do governo, o PR chamava a si a missão de procurar arrumar esta agenda e mobilizar o país para resolver este amontoado de lixo que vai ficando e que nos entope o funcionamento.
Cavaco Silva e Passos Coelho têm sabido rodear-se das pessoas certas?
O problema é saber quais são as pessoas certas para ajudar em determinada situação. São aquelas que cientificamente são as mais capazes ou são aquelas que nos fazem sentir mais confortáveis? Acontece que, em primeiro lugar, tendemos a rodear-nos de pessoas com quem nos sentimos mais confortáveis, com quem nos identificamos, ou seja, reproduzimos na escolha as nossas próprias limitações. Quando Cavaco Silva inicia o seu mandato, olhamos para a Casa Civil e não há ali um músculo político forte. Lembro-me de Jorge Sampaio com Magalhães e Silva, Miguel Galvão Teles, Brederode dos Santos e até gostaria de ter estado em algumas dessas conversas. Cavaco Silva também teve um círculo, mas não teve um músculo político de reflexão, de leitura, porque é um executante, um gestor. Se não fosse gestor, era engenheiro.
E o primeiro-ministro?
Pedro Passos Coelho – dos primeiros--ministros mais parecidos com Cavaco Silva, curiosamente – sempre teve, como Cavaco, alguma desconfiança e distância em relação àquilo que, na opinião dele, é a política formal; os políticos que pensam muito e que analisam, a pressão política e a criação de factos políticos, sempre achou que isso era, se não uma excrescência da política, um extra, uma inutilidade. Olhamos para a equipa de Passos Coelho e isso foi um preço que ele pagou, teve de andar a tocar os instrumentos todos da orquestra – no final, também é o único músico de quem nos recordamos – porque não havia uma gestão política. Lembro-me, recordando o governo que integrei, de lá estar eu, Marques Mendes, José Luís Arnaut, o próprio Paulo Portas, todos tínhamos a responsabilidade de fazer essa leitura política. Passos Coelho fez isso com Miguel Relvas até meio caminho, depois foi aquele gigantesco flop, com a entrada de Poiares Maduro. Não por demérito de Poiares Maduro, que era o menos indicado, por desconhecimento, afastamento, uma série de coisas, mas porque havia uma equipa que já estava em funcionamento a quem vieram dizer que agora estava ali um novo maestro. Mesmo para alguém com experiência, seria difícil; para um alien, dava no que deu. Depois, e é evidente que existe, porque não há tempo nem condição, um certo isolamento dos decisores políticos.
O exercício do poder muda as pessoas?
Isso é o que considero mais decisivo, na minha experiência foi determinante. Depois de quase quatro anos de governo, tendo ido para lá com 20 anos de política, experimentado, alertando-me a mim próprio para todos os riscos do isolamento, de não repetir os erros, a verdade é que quando saí, e tenho seis irmãos, alguns deles e alguns dos meus amigos mais próximos diziam-me que não lhes apetecia estar comigo, que eu não era o Nuno, estava num momento qualquer em que não tinham paciência para mim. Sempre mantive essa sanidade e procurei agir em conformidade, mas demorei um ano e meio a perceber o que eles queriam dizer.
E o que descobriu?
No fundo, explicando, é assim: o ser humano é todo igual. Tem ódio, amor, perdão, raiva. A gradação de cada um destes elementos é que varia e faz de nós únicos. Se for para a casa da Madre Teresa de Calcutá lavar leprosos, isso é capaz de lhe puxar pela humildade, pelo desprendimento, pelo amor pelos outros. Se for para o governo, isso é capaz de lhe puxar pela arrogância, pelo autoritarismo. E vai fazê-lo, evidente que vai. Mais: até pela falta de condições de exercício político – lembro-me de muitos momentos, na guerra da RTP, por exemplo, em que tinha de me convencer a mim próprio de que tinha razão e que os outros estavam todos errados para ir em frente. Mas isto é o exercício mais arriscado que pode fazer consigo próprio na vida. Esta é a transformação mais importante que acontece, não a todos da mesma maneira – a Manuela Ferreira Leite é quase imune a isto, não absolutamente, que o autoritarismo, aquela voz, quando em funções, cresce, mas é quase imune a isto. O comum dos mortais, nos quais me integro, muda.
Com quem ficou a dar-se particularmente bem ao longo deste tempo?
Dou-me bem com muita gente, fiz amigos que guardo. João Matos, José Miguel Júdice, José Manuel Durão Barroso, José Luís Arnaut, Vera Jardim, o professor Azeredo Lopes, podia ir por aí fora, muitas pessoas improváveis do ponto de vista político.
E, ao contrário, com quem ficou com uma má relação?
Há duas pessoas que é melhor eu não ver sozinho porque ainda sou capaz de as mandar marcadas, são o Carrilho e o Vicente Jorge Silva. Mas tem a ver com limites que eu acho que eles ultrapassaram no respeito, ou na falta dele, pela dignidade de cada um. E o Carrilho, foi pena não o ter mesmo encontrado, porque se calhar acertava contas por outros ou por outras, ou fosse o que fosse. Mas não o apanhei. Houve uma altura em que andei a pensar onde o iria encontrar, mas depois era um espectáculo, com o “Correio da Manhã” três semanas a dar notícias, não valia a pena. Mas eu sou um pobre pecador. Em mais novo jogava boxe como forma de me tratar, de me equilibrar. Todos temos as nossas terapias.
Passamos do boxe para as condecorações, que hoje foi dia. Tenho uma lista de nomes e queria saber que “medalhas” lhes entregaria, mas estas são especiais: papel, latão, pechisbeque, vidro, ouro, platina, bronze, materiais à sua escolha. Começamos com João Rendeiro…
É cliente da PLMJ, não entregava medalha.
Carlos Costa, governador do Banco de Portugal.
Penso mesmo que em vez de ter sido reconduzido, devia ter sido medalhado. Se queremos agradecer não sei exactamente o quê que esteve para trás, era com uma medalha. Mas uma medalha institucional, bonita, embora de material corrente.
Juiz Carlos Alexandre.
Dava-lhe uma medalha mas em cerimónia privada, porque já chega de estrelato.
José Sócrates.
Há sempre – está a ver a Volta a França? – o prémio da combatividade. Dava–lhe esse.
Bruno de Carvalho.
Há um jogo no telemóvel que é o “Candy Crush”, que tem um símbolo que é assim uma almofadinha muito bonita, mas que rebenta. É como o vejo.
Passos Coelho.
Passos Coelho, como Cavaco Silva, de quem tudo me separa pessoalmente, e até em muitas opções, é um português que guardo como tendo sido importante em momentos decisivos para o nosso país, com erros ou sem erros. Estava lá e a medalha que lhe dava era de acordo com isto.
Jorge Jesus.
Ah, granda patife! Um patife [riso]. Eu penso que esta mudança e a forma como ele a fez reforçaram a portugalidade de Jorge Jesus, que tem tudo o que de bom e de mau um português é. Dava-lhe a medalha da portugalidade.
Paulo Portas.
Também lhe dava uma medalha, número um, porque já leva muitos anos e muitos quilómetros a tentar. A tentar servir cívica e politicamente. Dava-lhe uma medalha por todos os serviços prestados. Mas principalmente dava-lhe uma medalha tendo em atenção o futuro próximo muito difícil que tem à frente. O futuro político de Paulo Portas é muito difícil e dava-lhe uma medalha em nome dessas dificuldades.
Para acabar, António Costa.
Havia um carro nos países de Leste que era confiável, seguro, sólido, competente, mas não tinha rasgo, não tinha design, não tinha motor, não surpreendia, não nos levava mais longe. Portanto, esse não seria o carro que eu iria buscar para ir a algum lugar. Faz-me lembrar António Costa.
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