A manhã mal começara, o metro levava pouca gente, e esperava-o uma reunião na baixa, naqueles horários matutinos que os americanos acham próprios para iniciar o dia. Como receasse cometer o pecado de lesa-américa de chegar tarde, e também como, sendo possível, tencionasse percorrer a pé a Canal Street e a Bowery para ver parte de Chinatown a despertar – antes de entrar no outro mundo contíguo que começa onde se impõem os tribunais e continua pelo distrito financeiro -, saíra de Midtown mais cedo do que a prudência aconselhava.
Àquela hora, havia ainda muitos lugares sentados, o meio da carruagem estava desimpedido e quem ia de um lado via bem o lado oposto. Mas ele seguia como seguimos tantas vezes, olhando em frente, passeando os olhos, mas sem ver grande coisa para além de imagens fugazes e sombras, todo metido com os seus pensamentos e vendo mais para dentro do que em redor. Quando ele entrou, ela já estava sentada no lugar oposto àquele que ocupou.
Durante a viagem reparara uma ou duas vezes nos seus olhos grandes e negros, e tivera deles um vislumbre de tristeza, mas não prestara atenção, da mesma forma que não prestara atenção a tudo o mais que o rodeava, incluindo um homem que pregava o apocalipse ou o meio sorriso cínico e amargo de Frank Underwood estampado num cartaz que anunciava nova temporada da série que retrata bem o fedor de algumas relações entre as pessoas.
E podia ter continuado assim o resto da viagem, sem olhar mais e melhor. Mas na estação da Rua 14, nem ele sabe porquê, olhou de uma outra forma, olhou com atenção e para fora de si. Mesmo ao seu lado, sentou-se uma mulher com uma criança de colo, e a mulher dos olhos grandes, negros e tristes, sentada à sua frente, olhou para a outra mulher e para a criança e ficou subitamente com os olhos rasos de água. Não chegou a verter lágrimas, não se mexeu, não disse nada, simplesmente os seus olhos ficaram maiores, pareceram mais negros e mais tristes e encheram-se de água.
E assim ficaram, molhados, e ele ficou preso a eles, imaginando as razões daquela súbita água. E poderia ser tanta coisa, pode sempre ser tanta coisa o que perante a visão de uma criança pequena no colo da mãe nos molha os olhos. A lembrança longínqua de nós crianças no colo da nossa mãe, a lembrança de uma criança que esteve no nosso colo e já não está, a certeza de que nunca nele teremos uma criança, enfim, tanta coisa. Tudo isso, ou qualquer outra coisa, poderia ser a razão da água nos olhos dela.
Ou talvez fosse apenas porque ainda não aprendera a fazer com a vida o que Lawrence da Arábia faz com os fósforos no filme de David Lean, apagando-lhes a chama com os dedos sem pestanejar. Quando outro oficial lhe pergunta se não dói, ele responde que dói, mas que o truque está em ignorar a dor.
A água que lhe encheu os olhos seria a prova de que ainda não aprendera isso? Ou antes a prova de que já aprendera que Lawrence estava a mentir ao outro oficial e que ignorar a dor é apenas ilusão ou fingimento?
Escreve quinzenalmente ao sábado