A arrogância do conforto


Quando conheceram a pessoa certa, esses casais não sentiram que estivessem numa partida de xadrez romântica. Não havia especulação sobre se a outra pessoa estaria ou não interessada. 


Ellen McCarthy, repórter do “Washington Post”, editou há pouco tempo um livro com tudo aquilo que aprendeu sobre relações ao fim de anos a entrevistar casais: “The Real Thing: Lessons on Love and Life from a Wedding Reporter’s Notebook”. A conclusão a que chegou contrasta com os resultados de um estudo sobre violência no namoro que a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) apresentou na semana passada.

Se, por um lado, o estudo conclui que os jovens continuam a considerar alguma violência legítima no contexto de um certo arrebatamento, por outro, o livro diz-nos que “conforto” é a palavra mais utilizada por jovens casais para descreverem a sua relação. Não o conforto aborrecido da desistência, mas o de não haver estratégias nem paranóias, apenas o desfrute feliz do outro, da vida ao lado do outro. 

Escreve McCarthy: “Quando conheceram a pessoa certa, esses casais não sentiram que estivessem numa partida de xadrez romântica. Não havia especulação sobre se a outra pessoa estaria ou não interessada. Não se preocuparam com ‘regras’ como quanto tempo esperar até telefonar ou até marcar novo encontro. Foi tudo descontraído e transparente, sem a típica ansiedade do ‘será que gosta de mim?’.”

Ora aí está, é precisamente esta ansiedade que legitima que muito boa gente perca a cabeça e se defenda estabelecendo que a única alternativa à gritaria e aos pratos pelo ar é aquela expressão que eu estou agora a ver na cara dos noivos de Santo António: aborrecimento de morte. Pratos sim, mas bem pousados em cima da mesa e com carne assada e puré de batata para o resto da vida. 

Mas o amor não é uma coisa ou outra – é até mais provável que não seja nem uma coisa nem outra, já que a pessoa que atira pratos pelo ar e a pessoa que come carne assada todos os dias têm em comum o facto de não terem intimidade com o seu alegado objecto de amor. O primeiro porque está, antes de mais, numa relação consigo próprio (que a insegurança é autofágica); e o segundo, porque só precisa de alguém que lhe aqueça os pés, quer lá saber do resto.

Sinto que consegui ter várias “pessoas certas” sem nunca atirar um prato à cabeça de ninguém (um ou outro talvez tivessem apreciado como prova de amor, mas não faz mesmo o meu género) e sem desistir de viver, mesmo que tenha muito dificuldade em aquecer os pés. E acho que não perdi nada. 
 
Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado

A arrogância do conforto


Quando conheceram a pessoa certa, esses casais não sentiram que estivessem numa partida de xadrez romântica. Não havia especulação sobre se a outra pessoa estaria ou não interessada. 


Ellen McCarthy, repórter do “Washington Post”, editou há pouco tempo um livro com tudo aquilo que aprendeu sobre relações ao fim de anos a entrevistar casais: “The Real Thing: Lessons on Love and Life from a Wedding Reporter’s Notebook”. A conclusão a que chegou contrasta com os resultados de um estudo sobre violência no namoro que a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) apresentou na semana passada.

Se, por um lado, o estudo conclui que os jovens continuam a considerar alguma violência legítima no contexto de um certo arrebatamento, por outro, o livro diz-nos que “conforto” é a palavra mais utilizada por jovens casais para descreverem a sua relação. Não o conforto aborrecido da desistência, mas o de não haver estratégias nem paranóias, apenas o desfrute feliz do outro, da vida ao lado do outro. 

Escreve McCarthy: “Quando conheceram a pessoa certa, esses casais não sentiram que estivessem numa partida de xadrez romântica. Não havia especulação sobre se a outra pessoa estaria ou não interessada. Não se preocuparam com ‘regras’ como quanto tempo esperar até telefonar ou até marcar novo encontro. Foi tudo descontraído e transparente, sem a típica ansiedade do ‘será que gosta de mim?’.”

Ora aí está, é precisamente esta ansiedade que legitima que muito boa gente perca a cabeça e se defenda estabelecendo que a única alternativa à gritaria e aos pratos pelo ar é aquela expressão que eu estou agora a ver na cara dos noivos de Santo António: aborrecimento de morte. Pratos sim, mas bem pousados em cima da mesa e com carne assada e puré de batata para o resto da vida. 

Mas o amor não é uma coisa ou outra – é até mais provável que não seja nem uma coisa nem outra, já que a pessoa que atira pratos pelo ar e a pessoa que come carne assada todos os dias têm em comum o facto de não terem intimidade com o seu alegado objecto de amor. O primeiro porque está, antes de mais, numa relação consigo próprio (que a insegurança é autofágica); e o segundo, porque só precisa de alguém que lhe aqueça os pés, quer lá saber do resto.

Sinto que consegui ter várias “pessoas certas” sem nunca atirar um prato à cabeça de ninguém (um ou outro talvez tivessem apreciado como prova de amor, mas não faz mesmo o meu género) e sem desistir de viver, mesmo que tenha muito dificuldade em aquecer os pés. E acho que não perdi nada. 
 
Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado