O livro que reli mais vezes na minha infância foi um dicionário de sonhos do Círculo de Leitores.
Primeiro, porque tinha a imagem de uma senhora a dormir nua, o que lhe dava logo um ar tentadoramente perigoso. Depois, porque começava por apresentar vários testemunhos reais de sonhos de vários tipos e os meus favoritos eram os pesadelos e os sonhos premonitórios. Aquilo arrepiava-me.
Já na altura gostava de ler para me incomodar. Afigurava-se a fã de terror que continuo a ser. Sempre que me lembrava de um sonho, consultava a parte do dicionário propriamente dito. Lembro-me de especificidades que me davam vontade de rir, como o significado de se sonhar com óculos verdes ou com uma perna de pedra. Lembro-me de sonhar constantemente com dentes e de ter medo, porque significava a morte de alguém próximo.
Mas, à medida que o tempo foi passando, lá me fui apercebendo de que não devia levar aquilo tão a sério; de que, por exemplo, a verdadeira explicação para os meus sonhos com dentes era o facto de eu sofrer de bruxismo (lê-se “bruc-cismo”, seus badalhocos, e trata-se de ranger os dentes durante o sono, fazendo-me sonhar muitas vezes que comia a minha própria dentição) e de o meu subconsciente me dizer muito mais sobre o meu passado do que sobre o meu futuro.
Escrevi aqui, há umas semanas, como os sonhos influenciam a realidade por muito pouco: namorados que acordam amuados, pessoas que acordam apaixonadas, músicas que parecem incríveis, frases que parecem poesia… Mas vai-se a ver e são mais as sensações que tivemos do que outra coisa. Sensações difíceis de exprimir na realidade de forma que se tornem minimamente interessantes para os outros.
Dantes tinha sonhos levados da breca e contava-os às pessoas. A meio do discurso, ficava quase sempre a sentir que já devia estar a mandar grande seca. Demorei algum tempo a perceber esta distância entre o quão interessante é sonhar e o quão aborrecido pode ser contar um sonho – menos quando se sonha que se está a contar um sonho. Já me aconteceu.
Outro dia passei os olhos pelo livro da Rita Redshoes “Sonhos de Uma Rapariga Quase Normal”. Gosto muito dela, mas perguntei-me se não seria demasiado arriscado apostar assim na qualidade literária do seu subconsciente. O meu é um selvagem. Eu cá não lhe passava uma caneta para as mãos. Ainda me partia os dentes.
Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado