Zachary Leader leuSaul Bellow pela primeira vez mais por acaso. Escolheu “Dangling Man” pela capa e perdeu-se no meio da história. Descobri-lo-ia melhor uns quantos livros depois mas, ainda assim, nunca mais o largou. Há uns meses publicou o primeiro volume da mais ambiciosa biografia de um dos mais celebrados escritores americanos do século XX. Saul Bellow nasceu no Canadá a 10 de Junho de 1915, viveu com a família, descendente de judeus da Lituânia, em Sampetersburgo antes de emigrar para os EUA. Fixou-se em Chicago e tornou-se um dos mais brilhantes observadores de uma América em constante transformação. Em dia de centenário, Leader fala-nos do escritor, da obra e de uma biografia que ainda não está terminada.
O que fez de Saul Bellow um escritor tão especial?
Ele criou uma nova linguagem, descobriu uma nova voz que lhe permitiu dar expressão a uma paleta de observações e comentários que foram do meio da rua, dos estilos mais populares, até às reflexões mais académicas e filosóficas. E fez isto tudo com um estilo que não tínhamos visto antes, fazendo uso único das suas características de observador.
Uma espécie de analista do quotidiano, algo assim?
Mais ou menos isso. Desde muito cedo conseguiu ver para lá do óbvio, perceber o interior das coisas, das pessoas, das situações. E isso alegrava as pessoas, isso motivava-as, porque de repente estavam frente a frente com qualidades e características próprias que desconheciam. Ele reparava nos detalhes, via pormenores nas ruas e descobria-lhes magia. E além disto há ainda mais uma coisa que o tornou tão importante, algo que diz mais respeito à América.
Que é…
Ele deu voz à experiência da imigração, das pessoas que chegavam aos EUA, representava-as de alguma maneira. Ninguém escreveu o que é ser americano como o fez Bellow. As descrições eram muito fortes, estivesse ele a falar da América ou dos que queriam ser a América e ainda não eram. Escreveu sobre chegar ao Novo Mundo, sobre as diferenças para com o Velho, e fê-lo como mais ninguém.
É o seu escritor favorito?
É notável, quanto a isso não tenho dúvidas. Mas se é o melhor? Isso não tem resposta, não nesse formato. Há poucos dias perguntaram-me num programa de rádio: “Quem é o melhor escritor americano dos últimos 70 anos: Saul Bellow, Philip Roth ou John Updike?” A resposta apareceu-me de repente. “Um é uma pêra, o outro é uma maçã e o terceiro é uma ameixa.” São todos extraordinários. Dizer que Bellow é melhor que Roth, por exemplo, seria dizer que prefiro pêras a maçãs, nada mais. São diferentes. Não consigo escolher. A pergunta era simples, eu é que estou a ser evasivo, peço desculpa.
E como é Bellow visto hoje, fora do círculo académico e crítico? Entre o público, os leitores, tem esse estatuto de “fundamental”?
Parece-me que é razoavelmente reconhecido, apontam-lhe o mérito de ter transformado o panorama literário. Muitos dirão até que terá permitido o aparecimento de gente como o próprio Roth. Mas este estilo de Bellow pode por vezes ser difícil, tem muitas referências a outros trabalhos literários e a obras de filosofia. A escrita de Saul pode ser, em alguns momentos, muito longa, arrastada. Daí que os livros não sejam tão conhecidos junto dos leitores mais novos, dos estudantes. Além disso, perto do final da vida encostou-se mais à direita, politicamente falando, gostava de ser provocado para com liberais. Isso incomodou muitos académicos que se opuseram a ele. Talvez por isso ele não esteja tão presente nas universidades. Mas todos os livros continuam a ser editados. E as referências que a minha biografia tem tido não são para mim, são para Saul Bellow. São esclarecedoras de que existe interesse, de que se trata de uma figura importante. Mas talvez não seja um autor lido por tanta gente como seria de esperar.
Por isso decidiu escrever a biografia?
Foi um desafio que me foi feito. Na verdade, a ideia não foi minha. E para aceitar tive de me certificar de algumas coisas.
Exigências?
Não exactamente. Mas precisava de ter a certeza de que teria coisas inéditas ao meu dispor. O biógrafo anterior editou o livro em 2000, Bellow ainda viveria mais cinco anos. Mas entre a papelada de Bellow, no escritório dele em Chicago, estavam 150 caixotes de material que ali fora guardado depois de essa biografia estar feita. E além disso, das 200 caixas que o anterior biógrafo pôde consultar, 81 tinham material confidencial. Tive acesso a tudo isso, consegui aceder a muita informação e a escritos inéditos, correspondência. Isto e as pessoas com quem falei.
Algumas também nunca o tinham feito?
Diria que não estavam, na altura, preparadas para falar com o anterior biógrafo. Quando comecei este trabalho, três das cinco mulheres com quem ele casou estavam vivas e duas nunca tinham falado com ninguém sobre Bellow. E a terceira deu-me uma memória que a própria tinha escrito sobre a vida dela, com detalhes sobre a relação que acabou por ser a origem do livro “Herzog”, de 1964. Essa foi uma novidade incrível.
Até porque esta biografia procurou ser mais detalhada sobre a escrita…
Sim, acho que esse lado ainda não tinha sido suficientemente explorado. E por isso é que o livro é assim tão grande [832 páginas]. Bom, mas todas estas razões que invoquei aqui não são maiores do que o gosto que tenho desde há muito pelos livros de Bellow, isso foi o mais importante e decisivo. Aliás, estou neste momento a trabalhar no segundo volume, vou mais ou menos a meio.
Alguma vez o conheceu pessoalmente?
Uma vez, uma única vez, numa festa que a Universidade de Harvard faz todos os anos para homenagear algumas figuras importantes. Bellow estava lá para receber um diploma honorário, vindo directamente de Yale, onde tinha recebido outra dessas distinções. Estava lá o Roy Jenkins [político e escritor britânico], estava lá o Paul Samuelson [Nobel da Economia em 1970], Benazir Bhutto também foi convidada [antiga primeira-ministra do Paquistão]… Estava muito quente, eu fui vestido de forma muito descontraída. Bellow chegou de fato, impecavelmente vestido. Ali estava ele, rodeado de admiradores. Entrei naquele círculo e ele parecia entre o aborrecido e o chateado enquanto todos o ouvíamos. E nunca consegui passar desse encontro fugaz.
Teria escrito uma biografia diferente?
Não sei, nunca saberei. Mas ao que parece tive uma vantagem no meio disto tudo. Uma das primeiras pessoas que entrevistei para esta biografia, um dos editores de Bellow, disse-me que o melhor que me aconteceu foi ter escrito o livro sem que ele ainda estivesse vivo. Porque ele era evasivo, usava truques para que as coisas acontecessem à sua maneira, não era o melhor amigo de quem escrevesse sobre ele. Um cliente difícil.
Muito diferente da imagem que dava através dos livros?
Em todos os romances dele, o narrador tem uma voz característica cujas marcas podem ser próximas daquilo que ele revelava em entrevistas, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, Bellow falava com um tom formal, não com aquele modo jazzy com que escrevia. Em certa medida, era muito mais inteligente e perspicaz do que as personagens que construía. Por outro lado, teria mais falhas. E talvez nunca tenha querido dar às personagens os seus aspectos menos positivos, talvez tenha sido uma escolha consciente.
Qual o primeiro livro de Saul Bellow que leu?
“Dangling Man”, o primeiro livro dele [1944]. Não escolhi esse por ser o primeiro mas porque era pequeno, gostei da capa. Tinha ouvido falar, tentei, gostei muito, mas depois vim a descobrir que não era ainda o Bellow que seria anos e livros mais tarde. Mas tinha o que era preciso para ficarmos presos àquela figura. Dos que mais gostei talvez tenham sido o “Herzog” e “O Legado de Humboldt”, talvez também “O Planeta do Senhor Sammler”. Mas isto vale o que vale. Aqui nesta resposta podíamos voltar às questões das pêras e das maçãs.







