Turquia. Erdogan acordou humilde depois do mau resultado eleitoral e o seu AKP isolado e sem maioria

Turquia. Erdogan acordou humilde depois do mau resultado eleitoral e o seu AKP isolado e sem maioria


A perda da maioria absoluta do AKP abalou a moeda turca e levou o banco central a intervir, com os restantes partidos a afastarem o cenário de coligação.


Da noite para o dia, Recep Tayyip Erdogan não era mais o todo-poderoso líder da Turquia com um plano para inscrever na Constituição as suas ambições autoritárias. Muito mais calmo, desceu vários tons para um bastante mais conciliatório, com o balde de água fria das legislativas deste domingo a forçarem-no à postura exigível de um chefe de Estado. O seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) foi severamente castigado, perdendo quase dez pontos e, pela primeira vez em 13 anos, ficou à mercê de um acordo de coligação para conseguir governar.

Tendo em conta o novo mapa político, na sua primeira reacção ao resultado eleitoral, Erdogan disse que o país tinha entrado num período de incerteza: “Estes resultados, que não dão a possibilidade a nenhum partido de formar governo sozinho, têm de ser avaliados de uma forma realista e saudável por cada uma das forças políticas.”

Horas antes, o vice-primeiro-ministro do partido islâmico, Numan Kurtulmu, tinha admitido que será difícil encontrar um parceiro de coligação e que o cenário mais provável é um governo minoritário do AKP – que perdeu cerca de 70 assentos, ficando com 258 dos 550 no parlamento – a aguardar eleições antecipadas nos próximos meses. Esta declaração contribuiu para a queda da cotação da nova lira turca e das acções na bolsa de valores de Istambul, com os mercados financeiros a acusarem o nervosismo face a um possível retorno ao período de instabilidade governativa das décadas de 1980/90, que desencadearam a grave crise económica de 2001, abrindo o caminho para o triunfo eleitoral dos islamistas.

Entretanto, o Banco Central anunciou um corte nas taxas de juro sobre os depósitos em moeda estrangeira para contrariar a desvalorização da lira, que ontem desceu para mínimos históricos face ao dólar, enquanto a bolsa de Istambul registava perdas de 8%. 

A outra surpresa da noite foi o desempenho do Partido Democrático do Povo (HDP), uma formação secularista pró-curda, de esquerda, que bateu a fasquia dos 10% necessários para aceder ao parlamento, e vai estrear-se com uma bancada com cerca de 80 deputados (12% dos votos). Segahattin Demirtas, um dos dois líderes do HDP, disse que “esta é uma vitória dos que querem uma Constituição pluralista e uma solução pacífica para a questão curda”, e frisou que “o debate sobre o sistema presidencial acabou hoje”. 

Mais que o AKP, que apesar da perda de votos preservou uma clara vantagem face à oposição laica e social-democrata do Partido Republicano do Povo (CHP, que obteve 132 deputados), foi Erdogan quem viu estilhaçados os sonhos de uma maioria de dois terços que lhe permitisse reformar a Constituição e instaurar um regime presidencialista com plenos poderes executivos face ao actual sistema parlamentar. Desde que foi eleito, em Agosto passado, Erdogan concentrou cada vez maiores poderes e durante a campanha não só não respeitou a Constituição, que o obrigava a manter uma posição neutral, mas lançou sucessivos ataques à oposição, explorando inclusivamente o Islão como arma política.

“A Turquia entrou numa nova era”, lia-se na edição de ontem do jornal de grande circulação “Milliyet”, enquanto o “Sozcu” arriscou uma crítica aberta ao líder islâmico: “Os eleitores mostraram o cartão vermelho a Erdogan”. Mas sendo claro que o presidente vai continuar onde está, os resultados destas legislativas levantaram mais questões sobre o futuro político do primeiro-ministro Ahmet Davutoglu, o fantoche que Erdogan fez transitar de ministro dos Negócios Estrangeiros para a liderança do executivo. A sugestão de alguns analistas é que este possa ser servido como bode expiatório. No domingo à noite, ao assomar à varanda da sede do AKP em Ancara, Davutoglu não mencionou a perda da maioria, e recorrendo ao guião do triunfo e do optimismo, afirmou que “as eleições uma vez mais mostraram que o AKP é a espinha dorsal da Turquia”.

As eleições, que foram encaradas como um referendo ao reinado de Erdogan, contaram com uma participação recorde de 86%. Agora, e depois dos líderes dos partidos  da oposição terem rejeitado a possibilidade de coligação com o AKP, segundo a lei, o presidente deve aguardar 45 dias e, se entretanto não houver um acordo, pode convocar novas eleições.

Indícios de fraude eleitoral Entretanto, a delegação de observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) tinha críticas não só para a forma como Erdogan ignorou os deveres que lhe eram impostos como chefe de Estado, como pelo clima de “intimidação” a que foram sujeitos os meios de comunicação independentes. “Erdogan não respeitou as regras. Assumiu um papel que não lhe corresponde segundo a Constituição e isso tornou estas eleições menos justas”, disse ao “El País” o chefe da missão da OSCE na Turquia, o deputado espanhol José Ignacio Sánchez Amor.

O responsável chamou ainda a atenção para a forma “injusta e desigual” como as cadeias de rádio e televisão públicas cobriram a campanha eleitoral, com Erdogan e Davutoglu a protagonizarem mais de 100 horas de programação face às 14 horas dedicadas ao CHP e às três que mereceu o HDP.

No dia das eleições, a equipa de observadores da OSCE teve ainda um dos seus elementos detido por forças de segurança turcas, e Joel Nilsson, delegado do Partido da Esquerda da Suécia, revelou como foram ameaçados por membros do corpo paramilitar da Guarda Rural na província de Bingöl. “Disseram-nos: damos-vos 5 minutos para se porem a andar, se não o fizerem vão acontecer-vos coisas muito más”, adiantou ao diário “BirGün”. O observador sueco conta que naquela província da Anatólia encontraram urnas a que faltava o selo e recolheram denúncias de eleitores pressionados para votar no AKP. 

Também a Associação dos Direitos Humanos diz que os seus observadores foram impedidos de entrar nos colégios eleitorais nas províncias de Siirt e Kirikkale, e que em Ancara os observadores da oposição receberam “ameaças”. Houve relatos de confrontos em vários colégios eleitorais por todo o país, opondo os representantes dos outros partidos aos do AKP, acusados de terem tentado votar repetidas vezes, de introduzir vários boletins nas urnas e de comprar votos.

Ao apresentar o seu relatório, a OSCE recomendou às autoridades turcas “uma maior transparência na administração das eleições”. Ainda assim, Sánchez Amor notou que o resultado final, que esteve longe de corresponder às aspirações do AKP, mostra que a contagem dos votos decorreu “razoavelmente bem”.

Houve ainda assim um episódio “caótico”, envolvendo a contagem dos votos que chegaram das comunidades turcas no estrangeiro. Eram cerca de um milhão de boletins, e foram encaminhados para um centro de congressos na capital turca. “Por todos os cantos do centro havia um mar de mesas a contar os votos”, conta o deputado espanhol que presenciou a cena. Mas na mesa que recebeu os votos vindos da Alemanha descobriu-se que chegaram mais boletins do que o número de pessoas que tinham votado, tendo-se procedido à destruição sem nenhum critério do número em excesso. Isto acabou por desencadear uma discussão acesa que cedo deu lugar à estalada, obrigando a polícia de choque a intervir. Se o AKP contasse só com os votos da diáspora a realidade seria outra, e, com 50% dos votos, teria obtido outra vitória esmagadora.