Igreja de Arroios © Rodrigo Cabrita
Um dos vícios de raciocínio que frequentemente se tem no nosso país é confundir religião com moral, moral com ética e com as regras de conduta social. A religião, nomeadamente a católica (falo desta por ser maioritária no nosso país, mas a minha opinião aplica-se a qualquer uma), poderá defender princípios morais e sociais indiscutivelmente democráticos e humanistas – não é isso que está em causa.
No entanto, já não é líquido que a inversa seja verdadeira, ou seja, que para defender esses princípios se tenha de ser católico ou professar uma religião.
Mais: causa espanto, para não dizer que é um autêntico abuso, conotar ética com catolicismo, como se chega a fazer, por exemplo, ao nível das comissões de ética, seja dos hospitais, seja de outras instituições. A ética não é propriedade exclusiva de nenhuma religião nem de ninguém. Assumir que uns são automaticamente os “puros” (e que, portanto, podem fazer toda a espécie de malandrices que estarão perdoados) e outros, os “sem alma”, teriam à partida um handicap e só através de muito esforço alcançariam o “perdão” é uma atitude repugnante e de inaceitável arrogância intelectual.
Creio (ou espero… se calhar é melhor usar este verbo), no entanto, que este tipo de pensamento, se poderá existir ainda nas gerações mais velhas, seja já um assunto resolvido nos mais novos, nascidos e criados num ambiente democrático, o que não aconteceu com os outros, que viveram a infância e adolescência envoltos no “cheirinho a igreja”, como escreveu Eça.
Muito mais importante do que as opções religiosas de cada um, as quais deverão permanecer no foro da intimidade e da privacidade, importa no entanto veicular – através do exemplo, da vivência e da educação – princípios e valores humanistas, numa salutar convivência democrática. Mais importante do que ir à missa ou rezar o Pai-Nosso é aprender a respeitar os outros, seja a que nível for, prescindindo de comportamentos arrogantes e de superioridade. Mais importante do que se dizer católico, budista ou protestante, é sentir que o destino dos outros e da sociedade em geral não nos é indiferente e que temos a obrigação de contribuir para o bem comum.
Quantas vezes estas noções, básicas e fundamentais, são esquecidas na educação das crianças para dar lugar a uma série de símbolos, rituais e liturgias que não passam muitas vezes, afinal, de modas ou de “branqueamentos” da consciência para se repetir, no dia seguinte, com toda a displicência, atitudes e comportamentos que negam aquilo em que se diz acreditar? Não será este tipo de vivências e exemplos, pejados de incoerências e inconsistências, que influenciará negativamente os mais novos?
Tenho visto, por exemplo, nos últimos anos, práticas de colégios assumidamente confessionais que dariam, (quase) caricaturando, um passaporte directo para o Inferno. A superioridade moral e a arrogância de quem julga ter a caução de Deus chega a níveis insuportáveis, como é também discutível a inclusão de disciplinas de ensino religioso na escola pública e laica, mesmo que opcional e fora do horário lectivo.
A confusão entre a laicidade e as opções religiosas observa-se em todo o lado: se se fala de “defesa da família” é-se conotado com “direita” e “católico”. Confunde-se matrimónio (um sacramento) com casamento (um acto civil), defende-se que padrinhos, só se houver baptismo.
Creio que todos ficaríamos melhor – ateus, agnósticos, crentes e, dentro destes, os das religiões monoteístas e das outras – se fosse clara e evidente a separação entre a vida civil e as opções religiosas. E se não se confundisse também, já agora, religião com espiritualidade, filosofia, ética, humanismo, encantamento, estética ou contemplação. “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus” – acho que já ouvi isto em algum lado e dito por certa pessoa cujo nome tantos invocam em vão…
Pediatra
Escreve à terça-feira