Tiago Reis Marques. “A esquizofrenia é a pior doença que afecta a humanidade”

Tiago Reis Marques. “A esquizofrenia é a pior doença que afecta a humanidade”


A morte de John Nash, a mente brilhante que se tornou refém da esquizofrenia, foi pretexto para falar com o psiquiatra português que está a dar cartas no estudo da doença.


Tiago Reis Marques, psiquiatra e investigador português de 38 anos a trabalhar no Reino Unido, foi distinguido este ano com o prémio de Melhor Jovem Investigador no Congresso Internacional de Investigação da Esquizofrenia. A morte do cientista John Nash e da mulher num acidente de táxi emocionou-o, já que sempre viu uma referência no professor de Princeton diagnosticado aos 31 anos com esquizofrenia. Pretexto para uma homenagem à vida da mente brilhante, que considera uma lição para toda a sociedade sobre a importância de combater o estigma.

John Nash foi uma inspiração?
Tive oportunidade de o ouvir duas vezes em congressos de psiquiatria. Tinha uma aura enorme, pelo Nobel, por a sua vida ter dado origem a um filme de Hollywood.

Inspirou-o mais a seguir uma carreira científica ou a estudar a esquizofrenia? 
Acima tudo, o que impressiona é o curso da doença nele, claramente diferente daquilo a que estamos habituados. Em algumas coisas segue o curso normal, como a idade de início dos sintomas, entre a segunda e a terceira décadas de vida, ou os delírios de perseguição e grandeza. Mas a partir dos 50 anos ele pára de tomar a medicação e faz um percurso de uma melhoria gradual e progressiva até a uma certa recuperação. Não quer dizer que os medicamentos não ajudem: ele era a primeira pessoa a dizer que o ajudaram a reduzir a intensidade das vozes, por exemplo. Mas isto é um grande alerta para a heterogeneidade da doença e uma grande inspiração para fazer trabalhos nesta área para a perceber melhor. E, no fundo, diz-nos que esta não é uma doença apenas de mau prognóstico, o que para as famílias é uma mensagem importante.

O facto de ele ter tido uma vida altamente estimulada do ponto de vista intelectual, sabendo-se que isso é benéfico para o cérebro, pode ter melhorado o prognóstico?
Sem dúvida. Considero que um dos factores da sua resiliência foi ser uma pessoa com um nível intelectual superior. Mas acho que um dos factores prováveis para esta não degradação foi o acompanhamento e o suporte que teve da comunidade e da família. Durante muitos anos, quem se opôs à sua institucionalização foi a mulher. Por outro lado, teve muito apoio dos colegas. Era conhecido como o fantasma de Fine Hall – o departamento de Matemática da Universidade Princeton – porque vagueava e deixava rascunhos ilegíveis nas paredes e, mesmo assim, os colegas sempre o apoiaram. Convidavam-no para os seminários, davam-lhe trabalho sabendo que não o faria. 

Essa integração falta a muitos doentes? As famílias pensam que os doentes estão melhor nas instituições?
Sim, acho que é uma lição determinante que podemos tirar da vida de Nash. Devido à natureza dos sintomas, há uma grande pressão sobre as famílias para a institucionalização. Há ainda muito estigma e muito medo na sociedade em relação ao doente esquizofrénico. Mas para isso não acontecer, as famílias precisam de apoio. A sociedade tem de perceber que estes doentes são muito mais vulneráveis do que um risco. As famílias têm de ser apoiadas, tem de haver uma rede forte de apoio médico em comunidade e medidas sociais, como emprego protegido. 

Nash é das figuras que alimenta, no nosso tempo, a ideia de que a loucura anda muitas vezes ligada à genialidade. Há verdade nisto ou era uma excepção?
Temos de o encarar como a excepção. Na esquizofrenia, normalmente, os doentes têm défices cognitivos mesmo antes do surgimento da doença e um QI abaixo da média. Existe alguma ligação entre doença mental e alguns desempenhos excepcionais: entre criatividade e doença bipolar, por exemplo, o que sugere mecanismos cerebrais partilhados. Escritores e artistas em geral têm uma maior taxa de doença bipolar. No autismo, em particular na síndrome de Asperger, também se verificam competências muito específicas ao nível da matemática, da memorização. Mas são capacidades muito específicas e creio que nunca devemos aligeirar o que é o impacto de uma doença mental por haver estes outros lados.

O que mais o intriga na esquizofrenia?
A complexidade do cérebro e o que temos ainda por descobrir sobre esta doença. A esquizofrenia é, provavelmente, a pior doença que afecta a humanidade. 

Outros falarão do cancro ou das demências. Porque diz isso?
Surge na segunda década de vida, mas os doentes têm uma grande esperança de vida e chegam a viver 50 anos, com um impacto tremendo a nível pessoal, social e profissional, e todas as funções cognitivas superiores comprometidas. Os custos para a sociedade são enormes, já para não falar dos custos para o doente. Nash é mais uma vez exemplo: é uma vida amputada. Estamos a falar de um génio matemático que, a partir dos 30 anos, nunca mais produz cientificamente nem consegue ter uma vida normal. Veja-se o caso de Stephen Hawking. Aproximadamente na mesma idade é diagnosticado com uma doença neurodegenerativa que o coloca numa cadeira de rodas e impede de se mexer, mas continua a comunicar e a produzir. Nash era perfeitamente saudável por fora e a única coisa afectada é o cérebro. O que será mais grave?

É difícil comparar.
Não é possível, claro, mas é uma analogia que nos faz pensar como, de um momento para o outro, parecendo que está tudo bem, se destrói uma vida. Hawking acompanhou os filhos, casou várias vezes. Naturalmente, tem uma enorme resiliência, mas o estigma na doença mental é muito maior. Além disso, é uma doença com uma carga genética elevada. Um dos filhos de Nash tem também esquizofrenia.

Esse risco genético está bem definido?
Este tipo de doenças complexas são sempre multifactoriais. Há uma componente genética forte, mas também existe uma componente ambiental. Stresse elevado, consumo de drogas, crescer num ambiente com poucos recursos, tudo isso são factores de risco para a esquizofrenia. Em relação à componente genética, sabemos que há um componente hereditário forte. Se tiver um irmão gémeo verdadeiro, o risco anda à volta dos 40%.

O estilo de vida pode atenuar mesmo o risco genético?
Acreditamos que sim. Se tiver um familiar com esquizofrenia, o ideal é de evitar fumar canábis ou uma vida muito stressada. Claro que muitos outros factores de risco são muito difíceis de controlar. Ser vítima de abusos sexuais aumenta o risco de ter uma doença mental oito vezes; o abuso físico, seis vezes; o abuso psicológico, como bullying, três vezes. O facto de se nascer num meio pobre, sem estímulos, aumenta também o risco. Só conseguimos controlar aquilo a que nos expomos.

Que marca gostava de deixar nesta área?
Gostava de, de alguma maneira, descobrir novos mecanismos de acção da doença que permitissem encontrar melhores tratamentos. Enquanto cidadão, gostava de contribuir para uma diminuição do estigma associado à doença mental e para um aumento dos apoios, quer por parte do sistema de saúde público, quer na comunidade, quer no apoio à investigação. Apesar de as doenças mentais serem das mais pesadas, menos de um em cada cem dólares investidos em ciência é canalizado para esta área. 

Trabalha no Reino Unido e já esteve nos Estados Unidos. Comparando com estes dois países, como está Portugal no cuidados aos doentes mentais?
Os EUA são um país à parte, há o melhor e o pior. Agora, ao comparar Reino Unido com Portugal, temos de perceber que estamos a falar de um país com uma capacidade financeira muito superior.

O que existe de diferente?
Uma estrutura de cuidados na comunidade, com visitas domiciliárias, muito bem instituída, o que está a começar em Portugal. Temos psiquiatras em estruturas comunitárias nos diferentes bairros de Londres, o que em Portugal ainda não acontece nos cuidados primários. E também começa a haver uma atenção especial à fase de pré-doença. A esquizofrenia tem uma fase em que os sintomas ainda não se manifestaram na totalidade, mas há sinais que podem levar as pessoas a começar a serem acompanhadas mais cedo.

O que fazem nesse sentido?
Há uma grande articulação a nível comunitário, com as freguesias, nas escolas.

Tal como existem os protocolos para sinalizar maus-tratos?
Precisamente. Imagine-se um aluno com historial de esquizofrenia na família: se começa a faltar à escola, as notas a piorar e apresenta um discurso meio desconexo, é logo encaminhado. Em Portugal, sei que também há intenção de ir por aqui.

Mas há escolas com um psicólogo para mais de mil alunos. Será possível?
Com os recursos actuais na rede pública, não será possível. É nessa dotação de recursos que o Reino Unido se distingue.

Teria sido possível receber o prémio se trabalhasse em Portugal?
Acredito que sim. Hoje já há instituições a fazer um trabalho muito forte em neurociências em Portugal. 

Está fora há oito anos. Tenciona voltar?
Não digo que não, gostava de ter oportunidade de retribuir ao país o que fez por mim, já que me pagou a educação. Nos próximos anos tenho contrato para ficar no Reino Unido, mas depois vou reequacionar a minha vida e Portugal está sempre na lista de possibilidades.

Visto à distância, o que mais o inquieta: o estado da saúde ou da ciência?
Acima de tudo, a degradação da saúde e do trabalho médico. Os médicos têm uma pressão enorme para exercer uma medicina com pouco apoio e a ter de pensar mais nos números do que na assistência.

No serviço de saúde britânico não existe também essa pressão?
Claramente, o NHS tem vindo a sofrer muito com os cortes. Não digo que haja uma má intenção dos políticos. O facto é que a medicina, nos últimos anos, tornou-se muito onerosa. Antigamente era praticada só com estetoscópios e hoje temos medicamentos e exames que custam dezenas de milhares de euros. Obviamente que isto cria grandes problemas aos sistemas de saúde públicos. Agora, penso que não se pode ir longe demais. O desinvestimento na ciência, claro, também é preocupante. Portugal não é um país grande em dimensão nem com matérias-primas muito valiosas. O nosso grande recurso são as pessoas. Por isso, se não investirmos nas pessoas, vamos estar em apuros.

Há algum investimento que o fizesse voltar?
Acho que não é preciso muito. A criação da Fundação Champalimaud é um exemplo típico de como se pode mudar as regras do jogo muito facilmente e criar instituições de qualidade e reputação internacional num país pequeno. Acho que seriam apenas precisas pequenas mudanças para muitos de nós se sentirem mais atraídos a voltar. O facto de não deixarem que os médicos dediquem uma parte do tempo a fazer investigação é um exemplo. Isso sim, é política, e pode mudar. Estou em contacto com muitos médicos portugueses em Londres e a vontade de todos é, mais cedo ou mais tarde, regressar, mas também estão à espera de perceber em que instituições se podem integrar para não terem de parar de trabalhar nas áreas às quais dedicaram já tanto tempo.