Roquette. “Sempre houve a ideia que o nome Espírito Santo resolvia os problemas todos”

Roquette. “Sempre houve a ideia que o nome Espírito Santo resolvia os problemas todos”


Dono dos vinhos Esporão, José Roquette considera-se o sexto “ramo” da família Espírito Santo. Foi director-presidente do Banco no Brasil, depois das nacionalizações em Portugal, lugar que viria a ceder a Ricardo Salgado para regressar a Portugal e começar o grupo do zero.


Foi aí que Ricardo se perdeu, acredita. E conta a sua versão de uma história em que, definitivamente, Carlos Costa, não é o mau da fita, garante. Roquette é um homem low-profile mas não poupa críticas a um país e uma União Europeia à beira do abismo. “Não há na Europa líderes capazes de olhar para a senhora gordinha de Berlim de frente e dizer: somos pobrezinhos e temos de aprender a viver com Fiats e Peugeots, não podemos viver com BMW e Mercedes. Ia apanhar o susto da vida dela.”

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E fala de outras lideranças fracas, como as de novos partidos políticos que proliferam, a de António Costa, do PS, a do Sporting, de Bruno Carvalho. Denuncia ainda “a falta de integridade com que resolveu tratar Marco Silva” ou até do governo e “do espectáculo da privatização da TAP”. É por estas e por outras que, logo que pode e eles querem (e querem), põe os netos daqui para fora, com pelo menos um oceano pelo meio. “Na Europa isto não vai correr bem. Tenho 19 netos e decisões de investimento importantes para tomar. Um está na Austrália, outro nos EUA, outro em Manchester e outra no Quebeque. Vão para verem a coisa de fora para dentro”.

No início desta legislatura deu uma entrevista ao i em que dizia que Portugal não ia sair incólume mas acreditava no governo. Ainda acredita?

Não nos podemos queixar muito da classe política que temos em Portugal. Infelizmente não vejo grandes diferenças de qualidade em relação ao que vai por essa Europa fora. Vejo sobretudo uma incapacidade para entender e procurar estratégias. Estamos em permanente tentativa de ajustamento às mudanças, sempre a atirar ao lado. Se queremos acertar num alvo em movimento, temos de atirar para a frente. Portugal atira para trás e não era suposto que a União Europeia estivesse já viciada neste tipo de perspectiva, puramente reactiva. Quando toma medidas já a realidade lá vai, às vezes, longíssimo. A Europa é, nesse aspecto, frágil. Os seus líderes continuam a acreditar que a Europa é o centro do mundo e isso já lá vai.

Como vê a União Europeia, neste momento, e o que espera dela?

O senhor Juncker foi ao Reino Unido falar com Cameron por causa do problema complexo das eleições inglesas, que forçaram o primeiro-ministro a prometer um referendo até 2016 sobre a permanência na UE. Estava a senhora gordinha de Berlim e o atrasado mental do Hollande em conversações para colocarem riscos no chão do senhor Cameron, a dizer daqui e dali não passa. Ora isto não acrescenta rigorosamente nada, excepto a probabilidade cada vez maior de o Reino Unido ficar fora da UE. Isto, quando há duas questões importantíssimas pendentes para a Europa.

Quais?

A primeira são as correntes migratórias. Os ingleses têm muita experiência nisso – alguém me dizia que em Londres devem estar 5% a 10% das cabeças do exército islâmico. Mas a experiência do RU como democracia é muito mais antiga do que a da UE, têm muito mais linhas de defesa de prática objectiva do que a Europa comunitária. Quando Juncker tomou posse disse – e depois mandaram-no calar –, que a UE precisava de um exército europeu. Porque não são só as correntes migratórias, é o que se está a passar na Rússia: nesta altura, Putin não está a encarar outra coisa que não seja aquilo que os russos fizeram sempre que se sentiram apertados, que foi sair aos tiros. Se não podem vender petróleo, vão vender kalashnikovs.

Não nos podemos queixar muito da classe política que temos em Portugal

Qual é a segunda?

Barack Obama vai acabar o segundo mandato e quer deixar uma herança que tem a ver com dois grandes projectos em curso: o TTIP – Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, a assinar com a União Europeia, e o TPP – Parceria Transpacífica de Comércio, a assinar com a Ásia Pacífico. A Europa está a pôr areia na engrenagem de forma clara, embora possam existir algumas razões, e o TPP vai ser assinado já, para surpresa de todos. O mais extraordinário é que uma parte dos decisores do Reino Unido também acredita que o acordo pode ser um cavalo de Tróia e o que se vai seguir é que Cameron vai querer recuperar alguns compromissos.

O que vai acontecer à UE sem o acordo?

O que acontece é que o crescimento da economia global está todo naquela zona do Pacífico. Por isso o acordo acontece a esta velocidade; vai mudar o mundo. Haja ou não aceleração por parte da União Europeia nas negociações, estamos outra vez a cuspir para o ar. O bloco que se vai formar em termos da Ásia e dos países que subscrevem o TPP é inultrapassável pela Europa. Mas o que é grave é que no caso do TTIP a Rússia ficou excluída por razões óbvias e porque o TPP exclui a China, por considerar que o tipo de

economia que o país pratica não está dentro dos padrões do acordo. A exclusão da China e da Rússia são, quanto a mim, riscos absolutamente dramáticos.

Porquê?

Uma parte importante do meu dia é ler as várias versões dos acontecimentos. A minha faixa etária [fez 78 anos o mês passado] tem essa vantagem; a experiência ajuda a destrinçar, a fazer as interpretações de diferentes versões dos factos. Os chineses estão a construir estruturas para controlar espaço terrestre, marítimo e aéreo. Ora, se isto não nos cheira a turbulência e a trapalhada… E não posso deixar de juntar isso ao que está a acontecer em termos de TPP. E a União Europeia vai ser vítima da assinatura desse acordo.

O bloco que se vai formar em termos da Ásia é inultrapassável pela Europa. Estamos a cuspir para o ar

É empresário, está habituado a ter cenários alternativos. Portugal tem, devia ter, um plano B?

Portugal não pesa nada em termos geoestratégicos. Devíamos ter, mas estamos de pés e mãos atados. Estamos virados de frente para a Europa e com as costas voltadas para aquilo que devia ser uma estratégia alternativa, leia-se África e Américas. Uma coisa que a mim me dá um sentimento dramático de impotência é isto: Draghi [presidente do BCE] esteve no Estoril há dias e disse, em leituras atravessadas, que tentou fazer o seu trabalho mas, nesta altura, é uma questão política, por isso o problema não é dele.

Draghi diz isso desde que chegou ao BCE.

Mas há um ano houve uma alteração, que foi o Quantitative Easing (QE) e Draghi pôde dar finalmente à manivela com a autorização da senhora gordinha de Berlim. Ele, que de burro não tem nada, já percebeu que não vai conseguir, mesmo que faça printings de euros a uma velocidade inconcebível, recuperar alguma coisa daquilo que podia ter sido possível se tivéssemos começado há quatro ou cinco anos. Continua a ter inflação negativa, mas tentou entrar pela via do QE muito mais cedo.

Demitia-se. Ou não? Afinal há muitos magrinhos à volta da senhora gordinha de Berlim…

Infelizmente, o mais magrinho que anda à volta da gordinha de Berlim é o senhor Schäuble, que deve ter um trauma. E vive uma coisa que para a Alemanha é um objectivo nacional frustrado há centenas de anos, que é ganhar uma guerra. Acontece que a Alemanha acabou sempre destruída. Agora a senhora encontrou um processo para fazer uma guerra económica e são considerados a locomotiva económica da Europa. Mas não há liderança política capaz de olhar para a senhora gordinha de Berlim de frente e dizer: somos pobrezinhos e temos de aprender a viver com Fiats e Peugeots, não podemos viver com BMW e Mercedes. Ia apanhar o susto da vida dela.

Porque é que ninguém faz isso?

Porque estamos todos dependentes daquilo que acontece em Frankfurt. Os estatutos do Banco Central Europeu são um susto. Draghi tem experiência suficiente, Constâncio também. Estão a olhar para isto e a ver a história do Japão, há anos mergulhado em deflação, a repetir-se. Agora o problema é saber se o dinheiro que é injectado chega aos destinos certos, aos sistemas bancários dos vários países, para ficar disponível para promover o investimento.

E chega ao destino certo?

Esse é um dos problemas mais difíceis, não se saber onde fica. Em Portugal estamos em zona de investimento negativo. Acreditava-se que a mão-de-obra barata ia resolver os problemas todos e agora é preciso criar um ambiente que permita pensar novas decisões de investimento. Aconteceu que esta gente, tipo aprendizes de feiticeiro, com vassouras e balde, espalhou por aí um remédio chamado austeridade sem saber as doses certas e mataram a plantinha, que é débil. A instabilidade em sectores como a justiça e o fisco sempre foi um obstáculo e não há ninguém lá fora que não tenha pensado vir cá fazer um negociozinho especulativo, ganhar uns tostões e ir embora. Já nem vou falar do espectáculo da privatização da TAP, que me confrange.

Os dois candidatos [à TAP] são fugas para a frente para salvar as suas próprias empresas

Fale lá da TAP…

Os dois senhores que estão a concurso [Efromovich e Neeleman] são fugas para a frente, obviamente para tentar resolver os problemas das empresas onde já estão instalados e não o problema da TAP. A TAP no universo dos dois candidatos é uma estrutura pesada. E cada vez estou mais convencido de que não vai haver um candidato vencedor. Não me parece razoável que, com a diferença de alguns dias, um candidato altere significativamente para melhor a sua proposta de compra, como pediu o ministro da Economia.

O que falha na TAP?

A capacidade financeira para se tornar concorrencial. A TAP precisa de novos aviões, porque do ponto de vista competitivo estes já não chegam lá. Fernando Pinto sabe perfeitamente que tem de reformular a frota. A greve dos pilotos foi uma estupidez sem nome. A alternativa, e esta não é uma história nova, é a falência. Chipre tinha uma companhia nacional e fechou. O que a TAP tem de mais atractivo são as rotas da América Latina e África. Causa-me estranheza que nenhum operador de nível global, como uma British Airways, tenha mostrado interesse. É possível que queiram apenas as rotas? E, na hipótese de não haver decisão de venda, qual o plano B?

Há grupos nacionais com capacidade financeira para comprar grandes empresas, como o Novo Banco?

Se reparar, em termos de referências, e olhando para o sistema bancário do país como hoje existe, não sobra nenhum banco com centro de decisão – maus centros de decisão – em Portugal, só a Caixa Geral de Depósitos. Ou são chineses, ou angolanos ou espanhóis, para quem Portugal é uma deriva de segunda. Foi por isso que a Fitch fez um downgrade de todos os bancos portugueses: BCP, BPI e por aí fora são quase irrelevantes.

Quando se fala em vender o Novo Banco a estrangeiros cai o Carmo e a Trindade. Diz-se que vão perder a identidade nacional. Mas já todos perderam ou não?

Já. A partir da altura em que uma boa parte dos centros de decisão deixou de estar aqui. Se quiser recuar historicamente, este processo começou com as nacionalizações que se seguiram à revolução. Aí a economia portuguesa foi destruída, sobraram relativamente poucos empresários. O que aconteceu com o grupo Espírito Santo e com Ricardo Salgado não é nada que se possa considerar aceitável, mas pior que isso é a situação que se criou no país. Nesta altura há um conjunto de pessoas que foram clara e objectivamente enganadas na relação que tinham com um banco que, mesmo já com água a bordo, e de que maneira, toda a gente dizia – do Presidente da República à ministra das Finanças e ao governador do Banco de Portugal – que não tinha problemas. Hoje os clientes dos bancos vivem em permanente desconfiança. E também não se pode dizer, quando se tenta avaliar o impacto, que não há problema para os contribuintes, porque não se sabe, vai depender do preço da venda do Novo Banco e dos custos do contencioso, que pesam demasiado. É muita areia para a nossa camioneta.

Se o PPD/PSD sobreviveu foi porque eu consegui encontrar os instrumentos financeiros que o permitiram

Já identificou falhas. Quem deve ser responsabilizado?

O preocupante é que é difícil saber até onde isto vai, o que tem de irremediável e que soluções podem ser encontradas. Suspeito que o que se vai desenrolar daqui para a frente no caso da família Espírito Santo e do Banco Espírito Santo vai andar à volta disto, de dizer que a solução adoptada não foi a melhor para o país. Não sei como é que isto chega aos tribunais portugueses, nem como chega ao quadro mental dos juízes que têm de olhar para coisas em relação às quais não receberam nenhuma formação específica que lhes permita ter opinião sobre a matéria.

Mas qual é a sua perspectiva? Afinal chegou a ser o sexto ramo da família…

Sim, é verdade, havia seis ramos. Eu dei à luz a ESSI, a ES Control, a ES Financial. Depois das nacionalizações houve um convite, através de Roberto Campos, embaixador do Brasil em Londres, em 1975/76, era presidente do Brasil o general Ernesto Geisel, que ofereceu ao grupo Espírito Santo, sem nenhum pagamento, uma licença para operar um banco de investimento. O Brasil tinha bancos comerciais, que trabalhavam até 90 dias, e tinha bancos de investimento, que trabalhavam daí para a frente. Isso foi a âncora do grupo e o que deu alguma capacidade financeira, mas apesar de tudo não havia milagres. Fez-se o Banco InterAtlântico, depois a companhia de seguros. Não é do conhecimento público, mas um dos grandes suportes, nomeadamente no Rio de Janeiro, foi o senhor Artur Agostinho, uma pessoa que não precisava de cartão-de-visita.

O que fazia em Londres?

Estava a preparar a capacidade do grupo Espírito Santo para recomeçar do zero. Quando saí de Monsanto [prisão] consegui atravessar a fronteira mais ou menos disfarçado, já nem me lembro bem de quê – não ia nada virado para pegar no desafio que era tentar manter a chama e a marca e o nome Espírito Santo fora de Portugal. Estava muito mais virado para fazer aquilo que naquela altura me parecia certo, que era ter intervenção política.

Porque não seguiu esse caminho?

Sabe que quatro meses e meio de prisão dão para fazer uma análise interior bastante profunda. Eu era amigo de infância do Francisco Sá Carneiro. Aliás, se o PPD – depois PPD/PSD – sobreviveu, foi porque eu consegui encontrar os instrumentos financeiros que permitiram que um partido que não tinha qualquer espécie de suporte financeiro pudesse, em confronto com o PS, que era financiado pela Internacional Socialista, e com o PCP, financiado pela União Soviética, encontrar soluções. Eu sempre disse ao Francisco que ele tinha mesmo de fazer o partido.

Mas não é fundador porque acabou por ficar com a família Espírito Santo. Porquê?

Vi-os de tal maneira sem soluções, tão de braços caídos, numa reunião que tivemos numa finca de uns amigos deles em Puebla de Montalbán – porque atravessámos a fronteira por vias diferentes, o juiz ficou com os passaportes e eles quando saíram de Portugal também tinham de passar a fronteira, mas meteram-se com uns ciganos e andaram lá por trás de uns montes, enquanto eu vim numa via muito mais directa, saí por Badajoz [risos]. Bem, tinham ficado sem nada e eu tinha de os ajudar.

A greve dos pilotos da TAP foi uma estupidez sem nome. A alternativa, e esta não é uma história nova, é a falência

Entretanto já estavam implantados no Brasil…

Passados uns anos, um amigo com quem tinha uma relação próxima e por quem tinha enorme admiração, Ernâni Lopes, aparece como ministro das Finanças, no governo de Mário Soares. Fui sabendo que era praticamente irreversível a concessão de algumas entradas e mais tarde as privatizações dos bancos nacionalizados. Esta questão foi posta por mim aos meus sócios e discutida por todos – naquela altura as decisões eram tomadas, como ainda hoje, ao nível do chamado conselho superior, onde estavam os accionistas todos. Eu representava um sexto, o Mário Amaral outro sexto (um terço os dois), um terço estava ligado ao Manuel Ricardo, basicamente, e outro terço estava ligado ao Ricardo Salgado e ao comandante Ricciardi. Foi uma luta complexa até aceitarem a ideia, mas apresentei o problema muito claramente: ou vou para Portugal como sócio ou não, amigos na mesma.

Qual era exactamente a luta?

Eles continuavam convencidos que Portugal era um país controlado pelo Partido Comunista e que não ia acontecer nada que minimamente valesse algum esforço por parte do grupo. E a explicação que eu tinha de dar, porque era o responsável executivo do Banco InterAtlântico, o director-presidente, o CEO, era que alguma coisa tinha de ser feita, porque a nossa vocação fundamental era Portugal, sem isso não conseguiríamos atingir uma dimensão mínima, que foi aquilo que nos levou a tentar manter viva a imagem da família e do grupo fora de Portugal. E as posições extremaram-se. Mas acabei por sair do Brasil e deixar o Ricardo como director presidente, não só do grupo bancário brasileiro, mas também do controlo específico de tudo o que tinha a ver com a tesouraria, que ia até à ESSI. E é isso que o Ricardo hoje diz que não tinha tempo para fazer, as duas coisas, e que se descuidou e descurou.