Ana Salazar. “Nos anos 70 a linha que separa o bom e o mau gosto era tão ténue que era  inexplicável”

Ana Salazar. “Nos anos 70 a linha que separa o bom e o mau gosto era tão ténue que era inexplicável”


“Atrai-me tudo o que é simples, geométrico e minimalista. A diferença está nos pormenores inusitados”.


Ana Salazar teve um percurso inusitado em Portugal. Começou a vida profissional como guia-intérprete porque já no início da década de 70 acreditava no potencial do turismo. Depois, já na sua loja, a célebre Maçã, começou a estar ligada à concepção das colecções que importava de Londres. Finalmente, abriu a sua própria marca, que levou para Paris e vendeu para todo o mundo.

Em 2009 vendeu-a, seguindo as tendências internacionais, porque um criativo “nunca é um gestor”.

Teve azar e perdeu também o direito de usar o nome. Hoje lamenta profundamente que em Portugal não se privilegie o conhecimento dos mais velhos. E foi o trabalho do B.I. sobre Iris Apfel – empresária, designer de interiores, ícone de estilo que aos 93 anos, com os seus omnipresentes óculos redondos, deu origem a documentário nos Estados Unidos – que a convenceu a dar-nos uma entrevista. A primeira em muitos anos.

Custou-lhe ter perdido a sua marca?
Custou, claro, em devido tempo. Mas o que me custa mais neste momento é estar praticamente sem fazer nada, desligada da minha maior paixão, que é fazer moda. Sempre fui uma mulher independente a viajar consecutivamente devido ao meu trabalho e raramente estava em casa, direi mesmo em Portugal. Habituei-me desde muito nova, desde os 16 anos, a trabalhar. Os meus pais separaram-se muito cedo, quando eu tinha seis anos, casando ambos novamente, e eu não me integrava em nenhum dos ambientes, sentindo-me sempre uma intrusa. Por isso, quis tornar-me independente. Comecei como guia-intérprete, falava várias línguas, e até aprendi alemão. Entretanto surgiu toda a situação ligada à moda. Sempre vivi o dia-a-dia mais no futuro, o passado não é significante para mim. Não é que não tenha alguns pensamentos de coisas que perdi, mas servem-me sobretudo como referência. Mesmo quando abri a Maçã e fiz os primeiros acontecimentos de moda em Portugal, 15 ao todo, na Estufa Fria, na Sociedade de Belas-Artes e em muitos outros locais inusitados, e que demoravam três a quatro dias de preparação, foi sempre algo de novo. E depois, a própria internacionalização.

Que acabou com a venda da marca…
Bem, a internacionalização foi em 1985, só vendi em 2009. Foi algo que fiz de uma maneira muito consciente, era o que estava a acontecer no mundo inteiro, não havia criadores a trabalharem sozinhos. A empresa internacionalizou-se, mas a gestão e o marketing não acompanharam.

E tomou a decisão de se afastar?
De me afastar, nunca. Li recentemente um livro do Yohji Yamamoto, um criador japonês com imenso sucesso, em que a dada altura ele reproduz uma carta do Wim Wenders, o realizador de cinema que era um grande amigo dele, a dizer-lhe que sabia que ele tinha passado por muitas dificuldades. E ele respondia que sim e que por isso tinha vendido a empresa, também em 2009. Não é nada do outro mundo. As pessoas, quando eu vendi, disseram que só eu poderia ter feito aquilo. Foi uma decisão importante em que mais uma vez segui a tendência internacional. Depois, as coisas em Portugal são diferentes. No caso do Yohji, a empresa dele, que era brutal – só no Japão tinha uma série de lojas –, entrou em insolvência. Mas enquanto ele acabou por ficar a trabalhar para a marca, tendo completa liberdade e controlo da parte criativa e o seu negócio voltou a prosperar, isso não aconteceu comigo. Ele diz inclusive que o parceiro lhe tirou a pior parte, a administração financeira, para além de ter trazido um grande apport em termos de investimento.

A venda da marca não teve nada a ver com a crise de 2009?
A crise piorou a situação. Mas não foi só isso. Quando fui para Paris, em 85, os franceses já diziam que a fatia do bolo orçamental dedicada à moda estava a diminuir. A partir daí, e como eu queria ir para a frente, não consegui ter o apoio necessário. Entretanto, o Manuel, o meu ex-marido, teve uma doença prolongada durante anos e não consegui arranjar parceiros que o substituíssem. Não era exactamente uma questão financeira, mas de gestão. E esta tem a ver com a parte financeira, evidentemente, mas sobretudo com o marketing, que é para além da área comercial e da divulgação, o que em termos de internacionalização é extremamente trabalhoso. A minha área sempre foi a criação, não os outros campos. Os grandes grupos distinguem-se por isso. Em Paris fui ver a Fundação do Bernard Arnault, da Louis Vuitton, no Bois de Boulogne, que é fabulosa em termos de arquitectura, foi o Frank Gehry quem concebeu o projecto. Em Veneza está a colecção Pinaud-Printemps-La Redoute. Os grandes grupos são mesmo muito sólidos. Hoje, eles fornecem ao criador – além do financiamento e da gestão – aquilo a que se chama monitorização, a fim de a marca vencer neste competitivo mercado que é a moda.

Agora fiz uma paragem, tem sido uma fase muito difícil para mim
 
 

Era o que gostaria de ter feito?
Exactamente. Não percebo nem da parte financeira nem da gestão. De imagem percebo, devido a trabalhar nesta área há muitos anos .

Como começou a Ana Salazar?
Depois da revolução de 74, e durante os anos conturbados que se seguiram, comecei a exportar –já estava tão envolvida no design e nas colecções que importava de Inglaterra para a Maçã que eles próprios me pediram para supervisionar as fábricas com que começaram a trabalhar em Portugal. Passei, portanto, a ser a pessoa que acompanhava a produção dessas peças. Eles decidiam, eu controlava. É o que acontece em qualquer parte do mundo. Quando uma marca manda fazer coisas na China, envia para lá um estilista, é importantíssimo. Eu desempenhava esse papel aqui.

Ia para as fábricas?
Nesses anos tinha uma ligação muito forte aos industriais, à Portex, que já não existe, e à FIL.
Em Londres integrava a concepção das colecções que importava para a Maçã, porque as marcas inglesas achavam que os tecidos que eu escolhia e até o material das peças acabavam por ter mais sucesso em todos os mercados para os quais eles exportavam do que outras que normalmente produziam. Estas funções já eram de uma directora criativa, tal como acontece com a maioria dos criadores, como o Karl Lagerfeld. Não são eles que estão lá a fazer os desenhos nem as provas, há muitos degraus abaixo. Estive 11 anos em Paris e sei como é. Quando decidimos lançar a marca Ana Salazar, convidei um grupo pequeno de jovens estilistas na época, como a Eduarda Abbondanza e o Mário Matos Ribeiro, o Luís Barbeiro, que depois saiu destes circuitos, a Paula Mercês, que hoje está ligada à indústria, e o Henrique Semedo, que foi para Paris trabalhar para uma série de marcas clássicas, como o Daniel Hechter. A Ana Salazar apareceu por termos conseguido um cash flow muito grande com a Maçã, várias lojas, entre as quais a do Chiado, e com todo o público que era nosso comprador, desde a Paula Rego à Joana Vasconcelos, passando pelo Julião Sarmento – só para falar de alguns artistas. E pessoas ligadas a outras áreas como a Maria José Morgado, a Olga Roriz, etc. Foi realmente um marco e chegámos mesmo a ter o nosso ateliê e a nossa própria fábrica. Começámos inclusive a revender para não sei quantas lojas em Portugal, como a Loja das Meias, entre outras.

De repente fiz a Maçã e depois passei a ser a Ana Salazar. Estava à frente de toda a parte criativa

Qual era o seu trabalho na Maçã?
Basicamente, importava moda de Londres. Foi nessa altura que aconteceu a revolução. E porquê Londres? Porque nessa altura, em termos de maneira de estar, os anos 70 foram para mim dos anos mais criativos, os tais loucos anos em que a separação da linha entre o bom e o mau gosto era tão ténue que era inexplicável. Muito graças à criatividade e ao design, a qualidade não era tão importante nessa altura. A Maçã não foi o ovo de Colombo, havia outras lojas que importavam igualmente de Londres, mas talvez tenha sido a selecção, em termos de sensibilidade e de um gosto próprio que acabou por a diferenciar das outras. Passaram por lá todo o tipo de pessoas que marcaram aquela geração.

Teve alguma formação como estilista?
De todo. Nessa altura era impensável, nem existiam escolas. A minha formação foi toda através do que aprendi com os designers e fabricantes com quem trabalhei em Londres. Havia um conjunto de grossistas, wholesalers, que vendiam propostas de várias marcas, algumas de designers muito conhecidos como a Katherine Hamnet, que é desse tempo, o Ossie Clarck e montes de outros. E como éramos o maior importador de vestuário inglês em Portugal, acabei por tomar parte nas colecções, em todos os aspectos, não só no design, mas na escolha de materiais, que é para mim a coisa mais importante.

Parte sempre dos materiais para criar?
Sempre. Acho que é fundamental. O trabalho de moulage foi sempre o de que mais gostei .

Inglaterra continua a ser o único país da Europa com um estilo muito próprio…
Ainda hoje os fashionistas criam um estilo muito peculiar… Há muita criatividade. Mas para ganharem dimensão tiveram de ir para as passarelas de Paris. Por exemplo, a Vivienne Westwood, que tem a minha idade, e viveu com o Malcolm McLaren, abriu aquela loja engraçadíssima, com peças muito loucas e o relógio a andar ao contrário. Começou apenas por ter a loja dela, a Red Carpet. Só depois de ir para Paris é que começou a ter mais licenças, como a Red Label e a Anglomania, entre outras. Hoje em dia não há nenhum designer que trabalhe sozinho. Já não falo do facto de não haver apoios nem dinheiro. Tem sobretudo a ver com o facto de um criativo não ter normalmente capacidade de gestão.

Era uma pessoa que andava a mil e mudou tudo. Faltam-me sobretudo as viagens

Como fazia as suas colecções?
No meu caso, começava sempre com a escolha dos tecidos, em feiras como a Interstof e a Première Vision, em Paris, que se realizam sempre um ano antes de cada estação. Só depois é que ia construindo o que sempre chamei a coluna vertebral da colecção. Mas nunca fui aquele tipo de criador que diz que a colecção tal foi inspirada numa viagem, num pintor ou numa obra teatral. Gosto de viajar, de observar pessoas, comportamentos, “sinais do tempo”, e começo a estruturar a colecção a partir do que está à minha volta e que me suscita interesse. Afinal é este conjunto de situações que me inspira.

Mas manteve sempre os seus princípios…
Sempre, sóbrios, a que chamaram austeridade luxuosa. Em termos de construção, gosto de bases geométricas, talvez inspiradas na escola Bauhaus e na Art déco, que em determinado momento foram muito importantes. Tudo quanto é simples, geométrico e minimalista me atrai. A diferença reside em detalhes inusitados.

E onde fica a pessoa no meio da sua criatividade?
O indivíduo tem sempre de sobressair, não o que tem vestido. Uma pessoa nunca deve desaparecer por detrás do que veste ou do perfume que usa. Foi sempre esse conceito que esteve por detrás de todas as minhas criações.

Como foi a sua ida para Paris?
A abertura da minha loja coincidiu com a entrada dos japoneses na Europa. Do Yohji Yamamoto, da Rei Kawakubo, de quem eu sempre gostei mais do que do Issey Miyake. Tinham um tipo de construção, qualquer um deles, absolutamente extraordinário que tinha muito a ver comigo. O Yohji tem um lado muito ligado à arquitectura, com muitas referências ao Japão.

Isso significa que quando cria, integra no seu trabalho o que vai vendo de outros estilistas…
Não, posso reter referências mas, como criadora, vou criar as minhas próprias peças. Não tirei nenhum curso, sou uma autodidacta, como o Gaultier e outros estilistas dessa época. Nos anos 80, a ideia de se ser um estilista nem sequer era compreendida pela maioria das pessoas. Em muitas entrevistas em Portugal, o jornalista perguntava-me: “O que é isso de ser estilista?” Talvez eu tenha sempre feito as coisas muito cedo. Como a organização de desfiles sem qualquer tipo de apoio, que só começaram a existir em Portugal com a ModaLisboa e o Portugal Fashion. Agora, os criadores vão a esses eventos e as infra-estruturas estão todas lá. Na altura não havia nada disso.

Gosto das cidades, do movimento das grandes cidades, e fazem-me falta lugares como Nova Iorque, Paris, Tóquio

As Manobras de Maio marcaram a primeira saída da moda para a rua em Portugal…
Nunca participei nas Manobras da Rua do Século, só alguns dos meus discípulos. Mas mesmo antes disso já tinha feito alguns acontecimentos de moda que marcaram muitíssimo – e talvez por isso seja considerada a nível internacional a pioneira da moda em Portugal. O que acho mais engraçado, e que também acabei de ler no livro do Yohji, é a maneira como se alterou ao longo dos tempos a forma como as pessoas vão aos desfiles. Ele diz que quando foi para Paris, as pessoas que iam aos seus desfiles iam mesmo para ver a roupa que ele fazia, era para elas uma sensação fortíssima. Agora não, as pessoas vão só para serem vistas. E temos exemplos bem fortes disso: hoje em dia, os criadores de grandes marcas, quando fazem os desfiles, convidam desde artistas de cinema muito conhecidos até personagens muito inesperadas, como as irmãs Kardashian, por exemplo. Em Portugal somos pequeninos mas, basicamente, o que acontece e sobressai na comunicação é um bocado o mesmo.

Ainda há espaço para criadores como a Ana Salazar em Portugal?
Por exemplo, pensando no Yohji , Comme des Garçons, Ann Demeulemester, Margiela, etc., etc., com lojas em Tóquio, Nova Iorque e Paris, concluo que um criador como eles não tem espaço neste momento em Portugal porque aqui ninguém vende esse tipo de roupa. Cá vendem-se as grandes marcas de luxo porque dão estatuto, essa é a tendência do momento, sobretudo para os mercados de economia emergente. Paralelamente há marcas envelhecidas, como a Coach ou a Bally, que têm actualmente grandes criadores por trás e que estão completamente rejuvenescidas, apesar de o nome deles não vir para a frente. Nem os mais conhecidos nem os acabados de sair das faculdades, porque hoje em dia há escolas de estilismo extraordinárias. E talento houve sempre.

É ambiciosa?
Nunca fui, tenho uma maneira de ser que me diz que até agora não fiz nada, falta-me fazer tudo. E estou sempre à espera que algo me surpreenda, do novo. Todas as situações por que passei, desde a abertura da Maçã à criação da minha própria marca e à ida para Paris, me levam a pensar que os meus êxitos são sempre pequenos. Sempre pensei não só na minha área como no país em geral. Sempre considerei que a nossa situação geográfica e estratégica era excelente. E há muitos anos que pensava no turismo como uma das saídas para o país. Até fui guia-intérprete quando tinha 20 anos porque pensava que Portugal teria um futuro fantástico nessa área. Nunca pensei em ser criadora, apesar de criar os meus vestidos desde miúda, nunca pensei ser estilista, aconteceu tudo por acaso. De repente fiz a Maçã e depois passei a ser a Ana Salazar. Estava à frente de toda a parte criativa, mas porque sempre pensei em mim e em Portugal como um país igual aos outros. Nunca pensei que éramos subdesenvolvidos. No entanto, não tinha pensado em ser estilista porque não havia a mínima tradição de moda em Portugal, comparando com França ou Itália, ou mesmo Inglaterra.

Começo a estruturar a colecção a partir do que está à minha volta e que me suscita interesse

Continua a fazer alguma roupa?
Continuo a fazer projectos pontuais, mas que não têm nada a ver com o meu percurso anterior, pois passava a maior parte do tempo em Paris, onde tinha loja e showroom e exportava para o mundo, para além de desfilar nas semanas de moda, nas apresentações em Milão, as quatro vezes por ano que ia a Nova Iorque – onde tínhamos showroom próprio – ou ainda as duas vezes que ia ao Japão. Isto é um salto muito grande, sem dúvida nenhuma.

Está a pensar recomeçar?
Agora fiz uma paragem. Tem sido uma fase muito difícil para mim. Era uma pessoa que andava a mil e mudou tudo. Faltam-me sobretudo as viagens. Nem são aquelas de ir para um lugar paradisíaco de praia. Apesar de gostar, sou muito urbana. Gosto das cidades, do movimento das grandes cidades, e fazem-me falta lugares como Nova Iorque, Paris, Tóquio.