Santos Populares. Um arraial por noite não sabe o bem que lhe fazia

Santos Populares. Um arraial por noite não sabe o bem que lhe fazia


As Festas chegaram. Fomos parar à Associação Renovar a Mouraria, em Lisboa, onde fomos voluntários por umas quantas horas. 


Apontar o dedo é feio. A recriminação assenta mal em qualquer alma, tal como não fica bem um senhor espetar com um camião no túnel do Marquês de Pombal e provocar um estado catastrófico de trânsito em Lisboa. A cidade de pantanas – logo no calor de quinta-feira – e nós atrasados para cumprir o dever a que nos propusemos: por uma noite, trabalhar num arraial lisboeta. Calhou-nos – ou escolhemos, nunca se percebe bem – o Beco do Rosendo, morada oficial da Associação Renovar a Mouraria, que desde dia 4 inaugurou a farra no que aos Santos Populares diz respeito. 

Chegámos em modo ogre da maratona citadina, que é o mesmo dizer que o suor era – aliás, assim foi durante todo o tempo que lá estivemos – a nossa imagem de marca. Nada a temer, ainda assim, que esta é apenas mais uma questão inerente à roda-viva que é fazer de tudo o que nos pedem. O senhor do camião pode respirar de alívio, pois conseguimos cumprir o horário e chegar à hora combinada. 

Eram 18h30 quando a banda do dia – Chibanga Groove & Galissá – ainda acertava detalhes, fazia corresponder instrumentos com jacks, saídas e entradas, os amplificadores que viriam a dar cabo da festa, no bom sentido, claro. Nessa altura, o beco ainda se estava a compor, entre italiano, castelhano, português, tabaco de enrolar e derivados, carregar caixotes do lixo de um lado para o outro, ultimar o que falta antes da enchente. É nessa altura que nos apresentamos a Inês Fonseca, presidente da Renovar e nossa chefe por umas horas. “Tens jeito para desenhar, para artes?”, pergunta. Retorquimos que não, que fazer uma linha direita com esta mão coxa é quase como carregar um menir, proporcionalmente falando. Não obstante, “estamos cá para cumprir todas as tarefas”. E assim foi. 

a pior das caligrafias Inês leva-nos para o bar de apoio da associação, onde ocupamos o seu lugar na lida dos marcadores coloridos, aqueles que inscrevem a ementa na parede. Avisamos a priori que na escola básica fomos condecorados com o prémio de pior caligrafia alguma vez vista, isto antes de pegar na caneta dourada – ou azul? vá-se lá entender isto das cores – e começar por analisar o espaço que temos na parede. Depois disso lá marcámos uma linha recta na nossa cabeça e concluímos a tarefa com distinção. “Sardinha 3 (+ pão)… 3,50”, “Salada Multicor … 2,50€”, “Salgadinhos … 1,50€”, isto tudo tendo de superar as falhas de uma parede que não vai para nova e um bico de marcador tímido, sempre a encolher-se. 

Inês aprova, a nossa fotógrafa também, nós é que só descansamos quando temos a visão afastada do balcão. Continuamos convictos de que a nossa caligrafia é das coisas mais terríveis que já se viu por aí; ainda assim, as letras escritas à máquina – nunca à moda da primária, porque isso é uma confusão – eram perceptíveis, não assim tão distantes da caligrafia limpa de Inês. Aplausos interiores e respirar fundo, que esta não foi, como confirmaríamos depois, a mais árdua das tarefas. Por agora, siga a dança.

a dieta do lume O baile não pára, o que significa que a dança do vira das sardinhas e das entremeadas também não. É lá, na churrasqueira, que encontramos Natércia, a mulher de serviço na brasa, que nos dá as boas-vindas com um “percebes alguma coisa disto?”. Acenamos confiantes, sobretudo no que toca às entremeadas, que as sardinhas já são outros quinhentos. “Este é o meu segundo ano aqui, o ano passado gostaram tanto das sardinhas que agora não querem outra coisa”, conta. Eis quando alguém passa e pergunta a Natércia se está a dar formação ao novo estagiário, aquele que passados dois minutos ganha confiança junto à carne consoante a mesma ganhava cor e a gordura borbulhava. 

Este é, sem dúvida alguma, o posto de trabalho mais complexo que por aqui encontramos. Conforme vamos virando a carne e ajeitando o lume, o calor não passa. Somos transportados para uma realidade paralela, uma espécie de churrasco em Death Valley, Califórnia, onde a temperatura máxima que já foi registada vai para cima dos 56 graus. Não temos termómetro à mão para fazer analogias mais perfeitas, mas isso não significa que não lhe possamos garantir que estamos perante um calor, veiculado pelo fumo e pelas barbecues, inóspito, quase insuportável – dizemos quase porque Natércia é a prova do oposto. “Desde que aqui ando que já perdi bastante peso, ficas aqui a noite toda e amanhã acordas com menos três quilos”, afirma enquanto nos mostra quão largas estão as suas calças. É a chamada dieta do lume, nada mais simples.

saber dizer “Olha a Bifana” Quinze minutos no lume, há que erguer a bandeira branca, o calor ganhou. Por esta altura, 20h, o concerto já seguia no adro. A world music que se faz provoca neste arraial uma vertente alternativa, entre lenços na testa e roupas largas, quase hippies. As Festas de Lisboa celebram-se assim na Mouraria. O movimento no bar principal da Associação Renovar a Mouraria intensifica-se, se precisam de nós na cozinha é para lá que vamos. 

Perguntam-nos se sabemos fritar bifanas e aí estamos bem. Numa frigideira industrial, daquelas que todos gostaríamos de ter em casa, não há muito que saber, até porque o truque está no tempero das bifanas e esse já lá estava antes da nossa chegada. Sandra, nossa companheira por um tempo, cabeleireira por 25 anos antes de se ter mudado para aqui, há dois, aperta connosco como numa verdadeira cozinha se faz. “Ah não sabes acender o lume? Isto aqui não há facilidades”, diz--nos em tom de brincadeira. A partir daí é uma tríade que compõe o sabor margarina-banha-de-porco-molho. “Não podes deixar a frigideira ficar seca, para a carne não ficar dura.” Seguimos tudo à risca. 

Às tantas lá começam a chover pedidos. “Sai uma bifana!”, ouve-se sabe-se lá de onde. Respondemos que não ouvimos bem, que o concerto sobrepõe-se a tudo. O mesmo sucede com o “olha a bifana!”: não sai bem, temos de ir entregar ao bar, o que dificulta o timing e atrasa as encomendas seguintes. Até que Sandra nos dá uma lição de quem sabe a cantiga toda: “Tens de gritar, mas tens de gritar com uma entoação à Mouraria… ‘Olha a bifaaaana!’”, afirmação que gerou resultados imediatos. Posto isto, lá foram saindo as ditas, com luva na mão direita, era apenas pegar no pão, colocar a carne, juntar guardanapo e aqui vai disto. A recompensa veio meio às escondidas, pela voz de Sandra: “Olha aí duas fresquinhas para a malta da cozinha.” E que bem sabe entre a colher que leva os caracóis à taça de plástico e a espátula que envolve as bifanas no molho. Ao fim de 1h30, a chefe Sandra lá nos dispensou. Tarefa cumprida, mas há mais.

média ou grande? O turno prossegue no bar, entre cerveja, vinho verde e sangria. Hugo, nosso companheiro de ocasião, pergunta-nos se sabemos tirar imperiais, respondemos “mais ou menos”, que é igual a dizer que sabemos a teoria, não tanto a prática. À primeira, a coisa não corre pelo melhor – demasiada espuma, o que veio desaguar num final feliz: esta ficou para nós. Caras conhecidas prontificam-se a gozar: “Tens 23 anos e não sabes tirar uma imperial?”, acusação que nos motiva para a segunda. Pedem-nos uma imperial grande – sim, que há sempre a dúvida entre a cerveja de 0,25 l ou de 0,50 – só que a meio há um festival de espuma que nos explica que o barril acabou. 

Aventura que podia ter tido um início menos constrangedor, mas que depressa gira o disco. Afinal, isto só custa à primeira remessa. Embalar é o termo certo para caracterizar este exercício de braço e de concentração. Serviram-se bastantes, tal como saíram sardinhas, caldo verde, tudo coisas que a cerveja, tirada por nós com sucesso, ajuda a empurrar. 

Terminamos o turno às 23h, a apanhar o lixo das mesas e do chão, a separar o plástico do lixo indiferenciado, porque não há tempos mortos. Não ficámos para ajudar a desmontar e limpar, o cansaço era muito. Mas prometemos voltar, se for preciso uma mãozinha nas bifanas…