Joe Brainard: Poem (1971), exposição de Mikko Kuorinki
Ia escrever sobre o filme “Centopeia Humana 3” (oh não, uma crónica sobre escrever uma crónica!). Para quem não está familiarizado, trata-se do terceiro e último tomo de uma trilogia de terror de série B, escrita e realizada por Tom Six, um holandês que ficou retido na fase anal de Freud.
Mais que apreciar genuinamente estes filmes – cujo fio condutor é o intestino, mais concretamente a ideia de unir um número cada vez maior de seres humanos através de um só sistema digestivo… e deixo o resto à vossa imaginação –, diverte-me muito vê-los e sobretudo contá-los a pessoas impressionáveis. Sou uma espécie de resumo Europa-América ambulante para quem não se sujeita a certas perdas de tempo extremas, mas ainda assim está disposto (por vezes relutantemente) a receber informação em segunda mão acerca desse fascinante mundo de cérebros moles e estômagos rijos em que por vezes descanso.
Ia escrever sobre esse filme – em que um prisioneiro viola o rim do director da prisão, que por sua vez come clítoris liofilizados de uma tribo africana como se fossem rebuçados –, mas depois mostraram-me um livro tão interessante que vou ter de voltar a falar de memórias. Preferiam fezes? Então tomem esta solução de compromisso: quando era pequena tinha muita prisão de ventre e por isso sujeitaram-me às mais variadas mezinhas, como um raminho de salsa enfiado no rabo. Porque é que eu escrevi isto? Porque me lembro.
“I Remember”, originalmente publicado em 1975, é um livro do artista e escritor americano Joe Brainard que consiste em nada mais nada menos que um rol de memórias, quase todas muito vívidas de tão sensoriais. Foi um livro que inspirou muita gente a fazer o mesmo exercício e que tem o estranho efeito de ser tão íntimo quanto universal, lembrando-me um diário da minha adolescência a que dei o pretensioso título de “Autobiografia Ergonómica”.
As memórias tornam-nos confortavelmente irmãos, não tanto nas especificidades do conteúdo (Brainard cresceu como homossexual assumido na América dos anos 50), mas na forma como as processamos, como as ordenamos na definição da nossa identidade segundo critérios – o impacto de uma palavra, de um cheiro, de um toque – que só a nós parecem dizer respeito mas são mais ou menos os mesmos que nos regem a todos.
Este livro provocou-me alguma ansiedade. Ao mesmo tempo que é quase imediato o impulso para fazer um exercício semelhante, a torrente de memórias que desperta no leitor é avassaladora. Mas deixar-me-ia muito descansada investir nesta espécie de conta-poupança memória. Não gostava nada de me esquecer que vi a trilogia da Centopeia Humana ou que tive um raminho de salsa enfiado no rabo.
Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado