Engrenagens


Quais os profissionais do foro que não ficaram perplexos ante os mais insólitos casos, os mais desavergonhados truques e as mais ou menos descaradas tentativas de interferência?


A série da RTP2 “Um crime, um castigo” tem-me suscitado uma interrogação.

Seria relevante que uma qualquer instituição judiciária oficial (CEJ) ou associativa (AO, ASJP, SMMP) facultasse aos magistrados, advogados e inspectores portugueses, e em especial aos mais novos, um seu visionamento comentado e crítico?

A referida série retrata de forma brutal, mas verdadeira, as contradições institucionais, as culturas rotineiras e autoritárias de trabalho, os vícios individuais e corporativos, as angústias íntimas, as preocupações carreiristas, o protagonismo fácil, as pressões e ingerências políticas e hierárquicas que todos os profissionais do foro ou colaboradores da justiça de algum modo vivem e sofrem quotidianamente.

Todas as suas personagens, por mais bem-intencionadas que sejam à partida as suas iniciativas, acabam, a dado momento, embora em medidas diferentes, por transigir nos princípios, cair em armadilhas que não cuidam de evitar, cedendo, depois, no rigor que deviam imprimir à sua função de defensores da lei e dos direitos.

É verdade que, reflectindo de algum modo o sentimento popular, algumas profissões jurídicas saem menos bem retratadas do que outras.

É verdade, também, que por isso mesmo os desvios graves de alguns profissionais da investigação parecem sempre menos censuráveis e até mais aceitáveis do que os de outros profissionais mais directamente ligados à vida forense.
Contudo, até nisso, a série é absolutamente realista, pois é assim que pensa e sente a opinião pública.

Perdoa-se a uns o que não se perdoa a outros, até porque a função de uns é diferente da dos outros e as suas obrigações devem, por isso mesmo, ser distintas.

Ao contrário do que uma leitura simplista permite concluir, a série não procura aviltar nenhuma dessas profissões, antes revelar a “engrenagem” política, económica, social e corporativa perversa que enreda os seus profissionais, levando-os a tomar as mais inesperadas decisões.

Nesse sentido, ela revela tanto os aspectos heróicos e a dedicação total à causa da justiça daqueles que, para isso, muitas vezes prevaricam, como critica violentamente a atitude farisaica dos que, para não sujarem as mãos ou não se chamuscarem nos casos mais sensíveis, não se mexem e deixam andar.

O sistema judiciário português – todo ele – é, apesar de tudo, muito mais equilibrado e imune a interferências do que aquele que é retratado na série: daí também a aversão que ele suscita em muitas cabeças tidas por bem-pensantes.
Mas, ainda assim, quantos de nós, juízes, procuradores, advogados e inspectores, não nos sentimos já confrontados com algumas das situações ali retratadas?

Quem de nós não ficou perplexo ante as opções que se nos depararam ao abordar os mais insólitos casos, os mais desavergonhados truques e as mais ou menos descaradas tentativas de interferência?

É por tudo isso, e porque, de alguma maneira, o sistema actual de ensino e formação profissional de juristas, magistrados, advogados e investigadores os isola durante demasiado tempo da vida real que sucede para além das academias, das escolas profissionais e dos muros dos tribunais e departamentos de investigação, que creio ser importante fomentar um visionamento crítico, atento e informado daquela série.

Juntar magistrados, advogados e inspectores de polícia experimentados e, com base na série, analisar a realidade da vida judiciária com os novos profissionais da justiça poderia ser, estou certo, um bom contributo para a sua formação profissional e sobretudo humana.

Escreve à terça-feira


Engrenagens


Quais os profissionais do foro que não ficaram perplexos ante os mais insólitos casos, os mais desavergonhados truques e as mais ou menos descaradas tentativas de interferência?


A série da RTP2 “Um crime, um castigo” tem-me suscitado uma interrogação.

Seria relevante que uma qualquer instituição judiciária oficial (CEJ) ou associativa (AO, ASJP, SMMP) facultasse aos magistrados, advogados e inspectores portugueses, e em especial aos mais novos, um seu visionamento comentado e crítico?

A referida série retrata de forma brutal, mas verdadeira, as contradições institucionais, as culturas rotineiras e autoritárias de trabalho, os vícios individuais e corporativos, as angústias íntimas, as preocupações carreiristas, o protagonismo fácil, as pressões e ingerências políticas e hierárquicas que todos os profissionais do foro ou colaboradores da justiça de algum modo vivem e sofrem quotidianamente.

Todas as suas personagens, por mais bem-intencionadas que sejam à partida as suas iniciativas, acabam, a dado momento, embora em medidas diferentes, por transigir nos princípios, cair em armadilhas que não cuidam de evitar, cedendo, depois, no rigor que deviam imprimir à sua função de defensores da lei e dos direitos.

É verdade que, reflectindo de algum modo o sentimento popular, algumas profissões jurídicas saem menos bem retratadas do que outras.

É verdade, também, que por isso mesmo os desvios graves de alguns profissionais da investigação parecem sempre menos censuráveis e até mais aceitáveis do que os de outros profissionais mais directamente ligados à vida forense.
Contudo, até nisso, a série é absolutamente realista, pois é assim que pensa e sente a opinião pública.

Perdoa-se a uns o que não se perdoa a outros, até porque a função de uns é diferente da dos outros e as suas obrigações devem, por isso mesmo, ser distintas.

Ao contrário do que uma leitura simplista permite concluir, a série não procura aviltar nenhuma dessas profissões, antes revelar a “engrenagem” política, económica, social e corporativa perversa que enreda os seus profissionais, levando-os a tomar as mais inesperadas decisões.

Nesse sentido, ela revela tanto os aspectos heróicos e a dedicação total à causa da justiça daqueles que, para isso, muitas vezes prevaricam, como critica violentamente a atitude farisaica dos que, para não sujarem as mãos ou não se chamuscarem nos casos mais sensíveis, não se mexem e deixam andar.

O sistema judiciário português – todo ele – é, apesar de tudo, muito mais equilibrado e imune a interferências do que aquele que é retratado na série: daí também a aversão que ele suscita em muitas cabeças tidas por bem-pensantes.
Mas, ainda assim, quantos de nós, juízes, procuradores, advogados e inspectores, não nos sentimos já confrontados com algumas das situações ali retratadas?

Quem de nós não ficou perplexo ante as opções que se nos depararam ao abordar os mais insólitos casos, os mais desavergonhados truques e as mais ou menos descaradas tentativas de interferência?

É por tudo isso, e porque, de alguma maneira, o sistema actual de ensino e formação profissional de juristas, magistrados, advogados e investigadores os isola durante demasiado tempo da vida real que sucede para além das academias, das escolas profissionais e dos muros dos tribunais e departamentos de investigação, que creio ser importante fomentar um visionamento crítico, atento e informado daquela série.

Juntar magistrados, advogados e inspectores de polícia experimentados e, com base na série, analisar a realidade da vida judiciária com os novos profissionais da justiça poderia ser, estou certo, um bom contributo para a sua formação profissional e sobretudo humana.

Escreve à terça-feira