“Nenhum homem é uma ilha”: o verso de há uns séculos que pela clareza se fez provérbio diz-nos que não podemos escapar ao laço humano. Por mais destrambelhada que pareça a deriva, nenhum homem deixa de ser puxado por invisíveis correntes. A imitação é o nome do jogo. E se o Ocidente parece encadeado por um excesso de horizontes, com a cultura das celebridades a ganhar um peso totalitário, há partes do mundo que esse sol não acalora nem queima. Um bom exemplo é o Afeganistão. Em 2012, após a queda do regime talibã, era um terreno virgem em termos de meios de comunicação.
O empresário que hoje reina nessa indústria, Saad Mohseni, diz ao “El País” que quando nesse ano visitou o país para cheirar oportunidades se deu conta de que “não havia nenhum canal televisivo, porque os talibãs o proibiam; existia apenas uma rádio e cerca de 10 mil telemóveis no país”. Fazendo fast-forward com o comando, há uma linha que separa muito claramente um antes e um depois. Hoje operam no país cerca de 200 emissoras radiofónicas, há 100 canais de televisão e 13 milhões de telemóveis. E a corrida ao ouro – no caso, à ribalta – viu nascer “centenas de grupos de música pop”, adianta Mohseni.
Quem diria que, na realidade debaixo do sol dos holofotes, o rival à altura de Bin Laden poderia ser Enrique Iglesias. Foi o nome que veio à cabeça do fundador e director executivo do maior grupo mediático do país, Moby Media Group. Se dissesse Cristiano Ronaldo, a sugestão sublinhava o mesmo efeito. “Esta cidade é pequena demais para nós dois”, diria um qualquer cowboy enviado do Velho Oeste para explicar aos extremistas islâmicos aquilo com que vão ter de lidar de ora em diante. É isso que está a acontecer no país invadido pelos EUA pouco depois do 11 de Setembro. Esse atentado que o compositor alemão Karlheinz Stockhausen qualificou como a maior “obra de arte total” pode ficar mais claro à luz deste choque de culturas. De um lado, o modelo do estrelato importado do Ocidente, do outro a cultura dos mártires, dos exemplares guerreiros da fé que em nome de Alá infernizam a vida a quem não percebe o hip–hop deles.
Tout est pardonné O célebre compositor lixou-se à grande. Mesmo nos meios da música erudita, não lhe foi perdoada aquela afirmação. Talvez até por isso. São sensibilidades recomplicadas. Fosse a Beyoncé e, uma semana depois, tudo seria perdoado. Stockhausen estava já na recta final, a das homenagens, enormes salas que se lhe rendiam. Mas foi o mais politicamente incorrecto que podia ter sido nos dias após os atentados, e esse foi o seu fim. Passou o resto dos seus dias a tentar justificar-se. Nem valia a pena vir explicar a sua ideia, que estava a falar de uma obra que devia a sua grandeza à destruição e crueldade que provocou e desencadeou. A inteligência não socorre ninguém quando a ânsia de linchar já ferve no sangue da turba, que precisa saciar-se numa condenação catártica.
Mas vamos ao que interessa. Durante uma entrevista no âmbito do Oslo Freedom Forum, na capital norueguesa, diz Mohseni que embora “não esteja seguro de que a pop possa mudar um país, certamente ajuda, porque graças à música, em vez de alguém ambicionar ser como Osama bin Laden, pode preferir ser como Enrique Iglesias”. A ideia é, afinal, muito simples e já Hannibal tinha explicado no seu quid pro quo com Clarice, citando Marco António – o romano, um dos primeiros políticos célebres da história –, que desejamos aquilo que temos perto de nós, que são os exemplos ou modelos que temos diante de nós todos os dias aqueles que acabam por exercer esse efeito de atracção a que é impossível escaparmos.
Assim, Mohseni explica que “não se pode subestimar a importância do entretenimento porque, da mesma forma que hoje as pessoas correm pela música, há 15 anos corriam para assistir a execuções”. Esta é a resposta que dá o dono dos canais de rádio e televisão de maior êxito no Afeganistão (Arman FM e Tolo TV) aos seus detractores, que o acusam de produzir conteúdos que apenas servem para distrair a audiência dos verdadeiros problemas do país, um país que está no 169.o lugar entre os 187 do Índice de Desenvolvimento Humano. Mas não é só a natureza de muitos dos programas que mais encantam as audiências lá como cá; há também a questão da origem do dinheiro que financia o seu grupo. Não surpreenderá ninguém que um dos seus grandes parceiros sejam os EUA; o outro é a News Corporation, o grande conglomerado mediático de Rupert Murdoch, visto hoje como o modelo do empresário sem escrúpulos, capaz de ir às últimas consequências para ganhar a guerra das audiências.
Seja ou não Bin Laden o arquitecto da obra mais espectacular de todos os tempos, durante muitos anos foram os seus inimigos que ajudaram a construir a reputação demoníaca de um homem que, do outro lado, e em proporção diametralmente inversa, se tornava uma estrela no combate ao grande mal do Ocidente. “É muito arrogante dizer que nós mudámos a sociedade; simplesmente sujeitámo-la a novas ideias e, se lhes dás uma oportunidade, a sociedade transforma-se por si mesma”, garante o empresário afegão que, filho de um diplomata, nasceu em Londres e vivia desde a adolescência na Austrália.
Like a Virgin Portugal, apesar de pequeno, não deixa de ter direito a fazer a sua versão do “American Idol”, mesmo se não há depois mercado para elevar alguém à escala de um ídolo. Muito feliz está o Tony com a sua carreira fenomenal no modelo de estrela monopolista que funciona por cá. Já “A Voz do Afeganistão” está a causar um tipo de furor que se compara ao que conseguiu há mais de três décadas “Gabriela Cravo e Canela”. Não há nada como a primeira vez, já dizia a Madona.
E tudo está encaminhado para que Mohseni esqueça o Iglesias e se refira a Cristiano Ronaldo numa próxima entrevista, já que um dos seus maiores recordes de audiência foi a cobertura da última liga de futebol afegã: “A final foi seguida por 15 milhões de pessoas: uniu o país”, garante. É bom para todos, parece. Pelo menos se a base de comparação for o passado. Comparar o futuro com um outro futuro é já entrar em utopias, e nos tempos que correm, há pouca tolerância para esses exercícios.
antes fãs que linchadores Mohseni justifica assim a importância dos meios de comunicação, como um motor que “impulsiona a sociedade civil”. E nessa suposição não está sozinho. Na mesma reportagem, o “El País” falou com Kimberley Motley, a advogada norte-americana da família de Farkhunda, a afegã de 27 anos que foi apedrejada e espancada até à morte por dezenas de homens enfurecidos que depois queimaram o seu cadáver em praça pública. O seu crime: nenhum. Mas foi acusada de ter queimado uma cópia do Corão. As imagens chocaram o mundo, não apenas pela barbaridade do acto, mas porque várias testemunhas garantiram que a polícia afegã assistiu a tudo, impávida e serena.
E é aqui que um sinal de esperança vem abrir caminho a um final feliz, podendo agradar o suficiente Hollywood para que lhe renda uma adaptação ao grande ecrã. Já estamos a imaginar Angelina no papel da… O que importa é que, na semana passada, Motley conseguiu que 11 polícias que presenciaram a sessão de linchamento fossem metidos na prisão por não terem protegido Farkhunda. Trata-se de uma sentença sem precedentes no país. E segundo a advogada, se o caso comoveu e indignou os afegãos, isso deve-se “também à sua repercussão” nos meios de comunicação. “A televisão e a rádio sugerem, mas é a sociedade que decide e reage, e o Afeganistão está a reagir.”