Vinha numa camioneta a caminho do Sul a lembrar-me de uma vez que ia precisamente numa camioneta a caminho do Sul. Uma das minhas músicas preferidas durante alguns dias da minha infância – corria para aí o ano de 1986 – era “Os Meninos do Huambo”, do Paulo de Carvalho, e eis senão quando eu e a minha família descobrimos que o próprio partilhava a mesma camioneta a caminho do Sul.
Lembro-me de ter achado que ele tinha muita pinta quando o vi, num intervalo da viagem, a fumar encostado a uma parede. Ou então pedi esta memória emprestada à capa do disco “Cantar de Amigos”, em que Paulo de Carvalho e Tozé Brito estão encostados a uma parede e que inclui o êxito “Olá, então como Vais” – uma canção que já em muito tenra idade me fazia rir pela poesia insólita da coloquialidade (acontece mais vezes do que desejaríamos encontrarmos um amigo, perguntarmos-lhe se está tudo bem e percebermos que afinal está tudo mal porque “foi um amor que eu perdi, ela partiu e eu fiquei. Se a encontrares, diz-lhe que estou por aqui”. Se a encontrar, direi).
Então, Paulo de Carvalho ali estava (ou não) encostado a uma parede e eu, pequenita, vi-me meio “star struck” naquela situação. Posso ter-lhe cantado o refrão de “Os Meninos do Huambo” para provar que sabia a letra toda, ainda que achasse que o Huambo havia de ser alguma cevada da família do Mokambo.
Viria a reencontrá-lo dias mais tarde, com um joelho espatifado depois de, já dotada de uma notável destreza física, andar pelas rochas a apanhar mexilhão. Ele estava na praia, com a actriz Helena Isabel (sua mulher na altura), e tenho ideia que olhou para o meu joelho ensanguentado e disse qualquer coisa como “tens de pôr aí um penso”. Penso que esta seja também a resposta às questões “quis saber quem sou, o que faço aqui”. Não há grande coisa a fazer para curar tamanhas angústias senão ir pondo uns pensos.
Não me lembro de ser aquela criança que passa o caminho todo a perguntar se falta muito para chegarmos. O momento da viagem, para mim, foi sempre uma pausa na vida, mesmo na altura em que toda a vida parecia ser apenas uma longa pausa – até fazer anos, até às férias, até ao Natal, até começarem os desenhos animados.
Hoje, três horas de viagem em que me posso dar ao luxo de saborear o tédio são aproveitadas sequiosamente para não me entreter com absolutamente nada. Enquanto me deixo levar geograficamente, vou-me deixando também levar por caminhos imateriais até datas inusitadas, quase esquecidas – como, por exemplo, esse tal dia em que conheci o Paulo de Carvalho numa camioneta a caminho do Sul.
Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado