Ian McEwan, em “A Balada de Adam Henry”, escreve que os jornais ingleses, para maximizarem o impacto, noticiam o frio em graus Celsius e o calor em graus Fahrenheit. E logo me ocorre que uma notícia sobre o pino do Verão em Fahrenheit dobra-nos o suor e uma notícia sobre o pino do Inverno em Celsius multiplica a necessidade de agasalho. E na mesma viagem em que o leio, leio outras coisas para encher o tempo do voo que reforçam o seu sentido. Hilary Mantel fala no burburinho do nosso tempo, em que todos gritam muito mas ninguém ouve nada. Mário Zambujal declara não apreciar um estilo de jornalismo que dá relevo ao mesquinho, bem como a vozearia e o turbilhão que ocorrem quando há uma canelada ao primeiro-ministro. Umberto Eco fala da “máquina de lama” e dos seus métodos e vítimas. São citações a que os olhos do leitor, com as lentes das suas experiências e das suas visões, dão um sentido de conjunto, lembrando-lhe um certo tipo de jornalismo que cultiva uma trindade que, não sendo santíssima, tem muitos fiéis: superficialidade, leviandade e parcialidade. A viagem não é para o Cairo, mas se fosse ficava bem associar às citações uma imagem possível da cidade, cheia de ruído, de imagens coloridas e impressivas, ofuscando uma realidade mais durável, importante e prenhe de sentido.
E esse jornalismo campeia, por exemplo, na cobertura do sistema de justiça. Raros são os dias em que se não vê ali aquela trindade ou em que se não julga estar sob o intenso ruído e a apelativa confusão de um qualquer Cairo. Assim é quando uma acusação vale uma primeira página, uma parangona ou uma página ímpar, e uma absolvição vale uma página par, um pé de página ou um estridente silêncio. Assim é quando um assunto que se arrasta vale quase sempre notícias e glosas, e dez assuntos que se resolvem não valem nada. E assim é, também, quando a espuma vale aberturas, tempo extra, comentários, gritaria, enquanto o que está sob a superfície vale um episódio aqui e ali, mas apenas se houver arte para o dar bem embrulhado ou engenho para o rotular de escândalo ou divertimento. Para cada milhar de cães que mordem o homem, de que não se fala, há um homem que morde ou aparenta morder um cão, de que todos falam. E repete-se a mesma coisa, várias vezes, e sem que se possa evitar, em certas ocasiões, a forte sensação de que o momento da repetição é escolhido, seja por razões do processo, seja por razões exteriores ao processo. E atira pedras, tantas vezes, quem se esqueceu de antes se olhar ao espelho, não tendo alguns sequer o pudor de apontar o dedo a falhas que eles mesmos praticam.
Se fosse possível, por um momento, fechar os olhos e tapar os ouvidos, resistindo ao apelo das imagens coloridas e abstraindo-nos do ruído intenso, haveria uma pergunta que um Cairo profundo, silencioso e perene imporia: isto acontece assim por que razões, apenas para alcançar o impacto máximo de que fala McEwan ou também por outros motivos?
Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado