Tribunais (americanos) dos pequeninos


Admitir um tribunal infantil-juvenil, só em duas circunstâncias: ou num programa humorístico ou num pesadelo nocturno.


Foi recentemente publicado um estudo* relativo a uma questão que, s.d.r., não poderia ser mais absurda. A questão é a da participação de crianças na administração da justiça quando o processo tem por objecto acções de… crianças. Trata-se de um tema recentemente desenvolvido nos EUA (onde mais poderia ser?) no âmbito daquilo que conhecemos como vias de “diversão e consenso” (i.e., vias de resolver questões de delinquência por processos paralelos à comum intervenção dos tribunais clássicos). 

Segundo os autores que defendem a bondade destas soluções de participação infantil nos processos sancionatórios contra crianças, o sistema não se limita a assentar e confiar na participação das mesmas nos processos que as têm como visadas, mas também permite alargar o conceito de cidadania às crianças. Esta via alternativa de resolução de casos penais aplica-se a crianças com idades entre os nove e os 17 anos que tenham cometido ilícitos criminais bagatelares e não violentos. A lógica subjacente assenta no pressuposto de que assim se potencia a influência positiva dos pares na conduta do delinquente.

Dizem ainda os corifeus desta ideia que a participação das crianças lhes dá o poder de controlar a própria reabilitação do agente, pondo nas próprias mãos do delinquente infantil-juvenil uma oportunidade de mudança de vida, e o poder de terem intervenção como jurados ou como qualquer outro sujeito processual.

Toda esta ideia é tão rocambolesca quanto onírica é a pretensão de que estes tribunais juvenis oferecem aos jovens delinquentes uma real oportunidade de se afastarem de uma vida de crime. Aliás, se essa suposta finalidade é, no mínimo, onírica, é totalmente risível a lógica de colocar crianças a brincar aos processos judiciais, a fazer de jurados, advogados, procuradores, consultores, funcionários judiciais ou seja lá o que for nestes tribunais dos pequeninos.

Achar que encenar uma farsa processual em que os sujeitos são pares etários do arguido pode potenciar a consciencialização do mal feito por este agente e, bem assim, pelos pares que vêem o seu igual caído em desgraça, é pretender que uma criança que brinca no Portugal dos Pequeninos pode, mercê da brincadeira, desenvolver uma maior consciência de cidadania, uma melhor interiorização das regras de circulação rodoviária ou perceber os mecanismos e técnicas da arquitectura e engenharia civil de edifícios.

Que nos digam que tais encenações, mais ou menos hollywoodescas, podem ajudar a desenvolver as aptidões comunicacionais dos actores, é indiscutível. Que lhes pode ensinar o ritual dos procedimentos e um mínimo de regras de protocolo “de adultos”, também é evidente, mas ainda assim dependendo do tipo de crianças de que esteja a falar-se. Mas que nos tentem convencer de que uma criança de nove ou dez anos consegue interiorizar princípios como o rule of law norte-americano ou as regras de descoberta de factos, que é a actividade principal de um processo sancionatório, tudo procedimentos que mesmo alguns adultos não conseguem dominar, é um rematado disparate.

Nunca se esqueça: a falibilidade da justiça feita por adultos advém, na maioria dos casos, da falta de experiência de vida, pouca maturidade e reduzido bom senso dos intervenientes processuais. Máxime dos julgadores, acusadores e defensores. Por alguma razão, no passado e nas culturas antigas, a função judiciária era (e é) entregue a anciãos, aqueles que acumulam em maior quantidade a experiência necessária à determinação dos factos e que mais desapaixonadamente olham para a realidade para a julgar.

Por isso, admitir um tribunal infantil–juvenil, só em duas circunstâncias: ou num programa humorístico ou num pesadelo nocturno. 

* Lynne Marie Kohm, Children Participating in Justice, in International perspectives and Empirical Findings on Child Participation, Ed. Tali Gal and Benedetta Duramy, Oxford University Press, 2015, pp. 283-302.

Advogado.

Escreve à sexta-feira

Tribunais (americanos) dos pequeninos


Admitir um tribunal infantil-juvenil, só em duas circunstâncias: ou num programa humorístico ou num pesadelo nocturno.


Foi recentemente publicado um estudo* relativo a uma questão que, s.d.r., não poderia ser mais absurda. A questão é a da participação de crianças na administração da justiça quando o processo tem por objecto acções de… crianças. Trata-se de um tema recentemente desenvolvido nos EUA (onde mais poderia ser?) no âmbito daquilo que conhecemos como vias de “diversão e consenso” (i.e., vias de resolver questões de delinquência por processos paralelos à comum intervenção dos tribunais clássicos). 

Segundo os autores que defendem a bondade destas soluções de participação infantil nos processos sancionatórios contra crianças, o sistema não se limita a assentar e confiar na participação das mesmas nos processos que as têm como visadas, mas também permite alargar o conceito de cidadania às crianças. Esta via alternativa de resolução de casos penais aplica-se a crianças com idades entre os nove e os 17 anos que tenham cometido ilícitos criminais bagatelares e não violentos. A lógica subjacente assenta no pressuposto de que assim se potencia a influência positiva dos pares na conduta do delinquente.

Dizem ainda os corifeus desta ideia que a participação das crianças lhes dá o poder de controlar a própria reabilitação do agente, pondo nas próprias mãos do delinquente infantil-juvenil uma oportunidade de mudança de vida, e o poder de terem intervenção como jurados ou como qualquer outro sujeito processual.

Toda esta ideia é tão rocambolesca quanto onírica é a pretensão de que estes tribunais juvenis oferecem aos jovens delinquentes uma real oportunidade de se afastarem de uma vida de crime. Aliás, se essa suposta finalidade é, no mínimo, onírica, é totalmente risível a lógica de colocar crianças a brincar aos processos judiciais, a fazer de jurados, advogados, procuradores, consultores, funcionários judiciais ou seja lá o que for nestes tribunais dos pequeninos.

Achar que encenar uma farsa processual em que os sujeitos são pares etários do arguido pode potenciar a consciencialização do mal feito por este agente e, bem assim, pelos pares que vêem o seu igual caído em desgraça, é pretender que uma criança que brinca no Portugal dos Pequeninos pode, mercê da brincadeira, desenvolver uma maior consciência de cidadania, uma melhor interiorização das regras de circulação rodoviária ou perceber os mecanismos e técnicas da arquitectura e engenharia civil de edifícios.

Que nos digam que tais encenações, mais ou menos hollywoodescas, podem ajudar a desenvolver as aptidões comunicacionais dos actores, é indiscutível. Que lhes pode ensinar o ritual dos procedimentos e um mínimo de regras de protocolo “de adultos”, também é evidente, mas ainda assim dependendo do tipo de crianças de que esteja a falar-se. Mas que nos tentem convencer de que uma criança de nove ou dez anos consegue interiorizar princípios como o rule of law norte-americano ou as regras de descoberta de factos, que é a actividade principal de um processo sancionatório, tudo procedimentos que mesmo alguns adultos não conseguem dominar, é um rematado disparate.

Nunca se esqueça: a falibilidade da justiça feita por adultos advém, na maioria dos casos, da falta de experiência de vida, pouca maturidade e reduzido bom senso dos intervenientes processuais. Máxime dos julgadores, acusadores e defensores. Por alguma razão, no passado e nas culturas antigas, a função judiciária era (e é) entregue a anciãos, aqueles que acumulam em maior quantidade a experiência necessária à determinação dos factos e que mais desapaixonadamente olham para a realidade para a julgar.

Por isso, admitir um tribunal infantil–juvenil, só em duas circunstâncias: ou num programa humorístico ou num pesadelo nocturno. 

* Lynne Marie Kohm, Children Participating in Justice, in International perspectives and Empirical Findings on Child Participation, Ed. Tali Gal and Benedetta Duramy, Oxford University Press, 2015, pp. 283-302.

Advogado.

Escreve à sexta-feira