Vendeu 100 mil exemplares do último livro, “Prometo Falhar”, e prepara-se para lançar “Queres Casar Comigo Todos os Dias, Bárbara?”. Do nada – ele dirá que não é bem assim –, Pedro Chagas Freitas tornou-se um fenómeno na cena literária. E nas redes sociais. É só um gajo que escreve cenas, insiste. Trouxe para a conversa a cara-metade quando deviam estar em lua-de-mel, ligassem eles a essas coisas. Bárbara mudou a vida do vimaranense que em miúdo pensou que ia ser jogador de futebol e não descarta ainda hoje uma carreira como treinador.
Há algum mistério em torno de si.
Mistério?
Por exemplo, quem era o Pedro Chagas Freitas antes de ter 300 mil likes no Facebook e 22 livros publicados?
O primeiro livro foi lançado em 2005, faz dez anos. Era um gajo normal.
Fazia o quê?
Trabalhava em publicidade.
Mas sempre quis ser escritor?
Digo sempre o mesmo: sou um gajo que escreve cenas. A ideia do escritor é aquela figura muito pesada, muito cinzenta, é o indivíduo fora do mundo, um iluminado. Tentei sempre combater isso.
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Mas começou a escrever quando?
Desde miúdo, o que me ia na alma. Numa primeira viagem pela escrita, se calhar é isso que fazemos: exorcizar alguns demónios. Mas levar a sério no sentido de pensar em escrever livros, talvez tenha começado mais tarde, aí aos 15 ou 16 anos.
É aí que começam os 150 livros da sua biografia?
Na contagem dos 150 não incluo esses primeiros, não faço ideia onde estarão.
Então são 150 livros desde quando?
Desde os 18 anos.
Dá dez livros por ano.
É. Aliás, em 2010 lanço dez livros quase em simultâneo. Tinha lá muitos em casa e quis libertar espaço.
Isso a pagar pelas edições?
Sim. Quando lanço a primeira obra, em 2005, já tinha sete ou oito escritas. Julgo que nunca usei nada anterior a 2005. Tenho muita coisa perdida, em disquetes. É difícil identificarmo-nos com coisas que escrevemos há muito tempo.
E em que parte é que foi nadador-salvador, operário fabril, barman, essas ocupações todas de que também dá conta na sua biografia?
No meio disto tudo.
Os pais diziam: se queres dinheiro, vai trabalhar?
Sim, sempre me incentivaram a trabalhar. Éramos uma família normal, tenho uma irmã mais velha cinco anos. Quando estive na fábrica de calçado foi por recomendação dos meus pais, para eu saber como era o mundo do trabalho.
Neste último livro, “Prometo Falhar”, há algumas referências a sapatos e encontros em sapatarias. Vem daí?
É possível, nunca me tinham dito isso. Tenho uma parte da família ligada à indústria do calçado e desde pequeno que conheço esse meio. É fascinante. Há um tio meu que, quando olha para alguém, a primeira coisa em que repara é nos pés e nos sapatos. É mais ou menos como na nossa área: quando lemos alguma coisa, pensamos logo em como foi feito.
Se não era para ser escritor, o que é que se imaginava a fazer?
Joguei muito tempo futebol. E quando jogamos temos sempre aquela ideia de ser jogador. Estive no Vitória de Guimarães e depois numa série de clubes.
Era gozado no balneário por escrever?
Nos estágios, os outros iam jogar à lerpa e eu ia escrever. Mas nunca me senti mal.
Jogava bem?
Costumo dizer que jogava mal em todas as posições. Era bastante polivalente.
Havia de ter algum valor.
Sou do tempo em que dizem que muitos pais levavam um presunto aos técnicos para os filhos jogarem mas, que eu saiba, a minha família nunca levou nem presunto nem um par de sapatos. Não terá sido por aí. Eu gostava, e ainda gosto, de olhar para o jogo e de o tornar mais previsível. Gostava de imaginar, das tácticas, de ser um prolongamento dos técnicos em campo.
Na altura não havia o Ronaldo. Queria ser como quem?
O Figo era o maior, mas não jogava no meu lugar habitual, defesa central. Gostava do Paulo Sousa. Internacionalmente, gostava do Fernando Redondo.
Como acaba a carreira no futebol?
Tenho de decidir o que fazer e optei por tirar o curso de Linguística em Lisboa.
Porquê Linguística?
Sempre quis perceber um bocadinho da história da língua, da sintaxe, da morfologia. Aprofundar instrumentos e ferramentas que eu contava usar muito ao longo da vida. Achava que iria escrever, fizesse o que fizesse profissionalmente. A minha ideia não era viver da literatura, era escrever. O jornalismo surge nessa linha. Logo no segundo ano do curso envio uma carta assim meio lunática para o jornal “A Bola” e chamam-me. Digo que gosto muito de desporto e que gostava de escrever. Era a mistura perfeita.
Valeu a pena?
Conheci pessoas que escrevem maravilhosamente e me ensinaram muito, como o António Simões, que me fez perceber que podia ir por outros caminhos. Lembro-me bem das dificuldades que tive no início, e daí insistir que é preciso treinar muito para escrever. Para escrever a minha primeira crónica de 1500 caracteres estive horas, não conseguia encontrar a voz.
E agora escreve rápido?
Depende. Sempre que tento um registo novo, demoro a encontrar as primeiras linhas. Mas é sempre um trabalho de joalharia. E foi isso que me levou depois a querer experimentar a publicidade. Queria experimentar a minha capacidade de síntese, de dizer muito em poucas palavras.
Sai porquê?
Apesar do ritmo diabólico, foi dos períodos mais profícuos em termos de escrita. Mas saio para me dedicar mais aos workshops de escrita criativa e perceber como chegar a mais pessoas. Lanço o primeiro livro em 2005 e percebo que sentia falta de quem me ajudasse nesse caminho, quem me ajudasse a treinar, que me colocasse exigências ao nível da escrita. E fui à procura dessa ajuda, enviei emails, pedi ajuda.
Qual foi o conselho mais valioso?
A obrigação de me exigir sempre que fizesse o melhor. Enviei uma obra que escrevi antes do “Mata-me” ao Fernando Venâncio, então crítico no “Expresso”, e lembro-me do impacto de ele dizer “tu consegues melhor” – uma espécie de eufemismo para “isto não é bom”.
Tinha noção ou custou-lhe ouvir?
Custou um bocado. Antes de mostrar a alguém que não conhecemos, mostramos o que escrevemos à família e amigos. Os meus pais diziam que eu era o próximo Fernando Pessoa.
Os seus pais liam muito?
A minha mãe, sim, o meu pai foi sempre uma pessoa mais voltada para a actualidade, de leituras mais técnicas.
Faziam o quê?
A minha mãe foi muitos anos administrativa e depois, já com 40, tirou um curso de esteticista. Teve essa capacidade de se reformular, o que foi sempre uma lição para mim. O meu pai foi funcionário público muitos anos.
Os seus pais apoiaram a sua opção de se dedicar mais à escrita?
Há sempre a ideia que o escritor não ganha dinheiro, mas eu também nunca quis ser escritor no sentido de só escrever livros. Ainda hoje faço mil e uma coisas, invento jogos, tenho os cursos. Nunca quis ser escritor profissional.
Mas agora é.
Não, divido com os workshops. E além disso estou sempre à procura de mais sarna para me coçar. Estar só a escrever não é o que me interessa.
Porquê?
Sei lá, é um desassossego. Quero pelo menos escrever outras coisas, como estou a fazer agora. Para música, para teatro. A diferença entre os meus livros mostra isso, que eu não quero ter sempre a mesma forma de olhar para o mundo.
Mas há um ponto em que o Pedro assume que é uma marca. Disse-o no final do ano passado à revista “Sábado”.
É incontornável que escrevo.
O que é que isso significa?
Foi tudo muito repentino. Eu sabia antes do “Prometo Falhar”, que saiu há um ano e um mês, que havia muita gente que queria comprar e ler as minhas obras, que tinham uma distribuição muito mais pequena e simplesmente não chegavam às livrarias. O último ano foi um boom, uma explosão que eu, embora esperasse, não esperava com tanta violência.
Mas ao dizer que é uma marca questionamos o que é verdade no livro, se não é escrito assim para vender mais.
Percebo a questão se virmos por esse lado, como algo construído para vender. Mas quando digo que é uma marca é no sentido de ser incontornável, de ser conhecido. Dostoievski é uma marca, não é por isso que ele se “vendeu”.
Mas o Pedro chegou a escrever os teasers sobre os seus livros, auto-elogios.
Já não faço, mas houve uma altura em que tive de o fazer porque não tinha uma editora que o fizesse por mim. Agora acho que não há ninguém que perceba melhor como vender a sua obra do que o autor – vender no sentido de as pessoas gostarem e quererem saber mais. Quando vejo um trailer de um filme, julgo que terá sido o realizador a fazê-lo ou pensá-lo. Porque é que o escritor não há–de poder fazer uma espécie de trailer?
Porque há a ideia do escritor recatado.
É a ideia que tento combater até à demência, do escritor que é a pessoa fechada no seu castelo.
Cheio de dúvidas.
Mas eu também tenho dúvidas.
Mas é preciso um grande amor-próprio para uma pessoa se autopromover tanto como faz nas redes sociais.
Mas isso é o que em todas as áreas é feito. Vamos ao Facebook de um músico e ele coloca as suas músicas, um pintor mete as suas obras.
Parece que, nos escritores, acreditamos mais na genuinidade de um Herberto Helder.
Sim, é muito mais credível, mas o Herberto é um caso extremo. Eu respeito quem tem essa abordagem; agora, a minha é: eu escrevo e quero ser lido. Como vou chegar aos meus leitores? Nos dias de hoje, através da internet. E cada vez há mais pessoas que o fazem assim.
Quando diz no seu site que o seu país preferido é a lamecholândia, é verdade ou marketing?
É verdade. Eu não tenho nenhum receio de assumir o meu lado lamechas. Há muito isso de dizer que os homens são todos uns brutos, que não gostam de textos sentimentalões, que não gostam de comédias românticas. Eu não tenho receio de assumir que gosto. Mas mesmo o “Prometo Falhar”, apesar de ser doce no geral, tem momentos com mais agressividade.
É o Pedro que está ali naquelas confissões ou é uma personagem?
Vai sempre um bocadinho de nós. Saramago dizia que nas capas devia haver um carimbo a dizer “esta obra leva uma pessoa dentro.”
Mas é um estilo muito confessional.
É um estilo. Um escritor é um mentiroso que diz sempre a verdade. Ali eu estou a mentir porque não sou aquela pessoa, mas digo a verdade porque estou a tentar sentir o que ela sente, que é o que todos os ficcionistas fazem. Sentirem o que não estão a sentir.
Tem muita certezas quase adolescentes, que a vida é isto, o amor aquilo. O Pedro tem estas certezas todas?
Não, estou sempre à procura de perguntas e respostas novas. Se calhar, em livros anteriores posso até ser mais assertivo que neste, que é um livro de questionamento. Tenho personagens que são mais adolescentes e se calhar vem daí a identificação de muitos adolescentes com o livro. Mas outras têm uma visão mais adulta, mais cinzenta.
Neste momento, que visão encaixa mais no seu estado de espírito?
Tento estar num meio-termo. Como dizia Camus, há duas formas de ver a vida: como La Palisse e como Dom Quixote. Às vezes sinto-me Dom Quixote: acho que vou conseguir tudo. Noutras sou mais La Palisse: limito-me a perceber o óbvio. Mas mais do que estar a narrar de helicóptero, gosto de narrar de lupa, de vir cá abaixo. Interessa-me mais o dia–a-dia, os corredores do supermercado.
O amor é uma obsessão sua ou só das suas personagens?
O amor é de longe, para mim, a coisa mais importante do mundo.
Apaixona-se facilmente?
Não tenho paixões repentinas por pessoas, mas por obras, por momentos.
Em “Prometo Falhar” fala muito do amor à primeira vista.
É preciso ver que nesta obra tive muitos contributos de leitores, da forma como eles vêem o mundo.
O que é que o seduz numa mulher?
O simples seduz-me. Seduz-me um abraço, um beijo, um olhar, um toque. Não posso dizer que sou facilmente apaixonável, mas claramente não vejo nada mais importante do que o amor, não só o amor que me liga à minha mulher. É o amor por estar aqui, por perceber que há muita coisa que nós desaproveitamos.
A sua mulher que é a Bárbara das dedicatórias dos livros.
Sim, todos desde que nos conhecemos.
Casaram quando?
Muito recentemente.
Então?
Há uma semana [no dia 15 de Maio].
Felicidades… As suas fãs já sabem?
Sim, sabem.
E a reacção foi boa ou ficaram desiludidas?
Mostraram bastante felicidade.
E não foram de lua-de-mel?
Nós fizemos uma coisa bastante privada, só estávamos os dois. Nem pais, nem nada. Só lhes dissemos depois.
Porquê?
Foi um momento nosso. Era uma data que já tínhamos marcado há muito tempo, mas não dissemos a ninguém.
Casaram onde?
Em Matosinhos, no registo civil. Nós e o senhor conservador. Como queríamos.
Conheceram-se há quanto tempo?
Há quatro anos.
A Bárbara era uma fã?
Ela viu num jornal uma notícia e começou a ler-me. Depois, um dia, eu procurei-a por acaso no trabalho porque precisava de uma ajuda de uma psicóloga para outra pessoa, e ela disse que me lia há algum tempo. E aí começámos a falar.
Antes teve muitas namoradas?
Tive algumas, mas desta maneira nunca senti nada. Foi algo completamente diferente e, se calhar, até vem daí alguma mudança na escrita para algo mais doce.
Sempre acreditou que ia encontrar a pessoa certa?
Sempre acreditei que existe um grande amor. Era uma convicção pessoal, não via o amor como sendo algo finito. Acreditava no amor até à morte e agora acredito muito mais. Apesar de ser algo adolescente, lá está, é a minha forma de ver o mundo.
Pedem-lhe muitos conselhos?
Sim, pensam que eu sou um especialista, um Dr. Oz. Se calhar, até mais homens.
Que conselhos?
Como é que pedem desculpas, como é que hão-de dizer as coisas.
O que é que responde?
Digo que não é a minha especialidade, que não sou psicólogo e que é muito mais interessante serem eles a pensar no que dizer. Mas acredito que muita gente usa o que escrevo – e dizem-mo muitas vezes, para chegar a outro lado – para pedir perdão. Tenho pessoas que me dizem “o seu livro é que nos juntou”. A obra tem muito esse lado prático, mas nunca foi minha intenção. Nunca quis escrever livros de auto-ajuda, eu escrevo ficção.
Mas era expectável, não?
Eu comecei a sentir isso antes do “Prometo Falhar”, que as pessoas importavam aquilo para as suas vidas.
Porque os seus admiradores devem acreditar que o Pedro deixa poemas espalhados pela casa para a Bárbara.
E eu faço essas coisas. Mas não sou um especialista em nada. Não sou especialista em declarações, não sou especialista em reconciliações, não sou especialista em abraços, não sou especialista em beijos. É tudo ficção.
Aparentemente, as pessoas acreditam que é verdade.
Isso é bom sinal, porque as pessoas percebem que eu senti o que estava a escrever. Mas é como levar a sério as personagens das telenovelas: sempre houve pessoas a tratar bem ou mal os actores pelas personagens que representam.
Mas tendo a marca “Pedro Chagas Freitas” esta componente, pode fazer algo completamente diferente?
Uma obra que irei publicar nos próximos tempos é quase sádica. As pessoas que estão à espera que eu faça sempre o mesmo vão ficar, se calhar, desiludidas. Chama-se “666”, que só por si já não é um número agradável.
Acredita em Deus e no Diabo?
Sou agnóstico.
Mas fala muito em Deus.
Não no sentido clássico. Dizer que Deus está num abraço, não sei se é católico. Acredito que há qualquer coisa, mas se é o Deus da Bíblia ou outro, não faço ideia.
Mas acredita porquê?
Há coisas tão maravilhosas que haverá qualquer coisa por detrás disso. As mulheres, os homens, os humanos quando querem, o sol, os pássaros. Isto tudo é uma maravilha, uma bênção, e gosto da ideia de agradecer o que temos.
(Leia a segunda parte da entrevista aqui)