A história pode e deve rezar dos fracos. Por isso, o underground ficava melhor no retrato que a cultura mainstream e as “franjas problemáticas” mereciam mais atenção que os temas populares. Pelo caminho, a cumplicidade conquistava-se com um longo namoro, que isto de piscar o olho fora da caixa exige esforço redobrado. Para “Ward 81” (1979), Mary Ellen Mark conviveu durante seis meses com as pacientes do hospital de Oregon. “Falkland Road” (1981) foi o saldo de três meses em contacto com as prostitutas de uma artéria de Mumbai. E das ruas de Seattle chegava “Streets of the Lost”, primeiro para a revista “Life”, depois condensado em “Streetwise”, a obra que serviu de base ao documentário filmado pelo seu marido, Martin Bell – um relato de uma adolescência feita de altos e baixos na cidade do grunge, com introdução a cargo do escritor John Irving, um dos muitos nomes que esta segunda-feira, no rescaldo da notícia da morte da fotojornalista, lamentou o seu desaparecimento.
Mary correu mundo, fotografou para publicações como a “Life”, “Rolling Stone”, “The New Yorker”, “New York Times” e “Vanity Fair”, integrou a agência Magnum entre 1977 e 81, passou pela Archive Pictures e, em 88, fundou a sua própria agência. Deixou a sua marca em inúmeros filmes, seguindo os passos no set em títulos como “Alice’s Restaurant” (1969), de Arthur Penn, “Catch-22” (1970), de Mike Nichols, “Apocalypse Now” (1979), entre uma centena de trabalhos nesta área que se estenderiam até “Australia” (2008), de Baz Luhrmann.
Nascida num subúrbio de Filadélfia, Pensilvânia, começou a fotografar com uma Box Brownie, com apenas nove anos. Na universidade formou-se em Pintura e História da Arte, mais tarde arriscou o fotojornalismo. Em 1965, à boleia de uma bolsa Fulbright, parte para a Turquia com a sua câmara, experiência que daria origem ao seu primeiro livro, “Passport”, editado em 1974. Foi em Trebizonda, naquele país, que conheceu a pequena Emine, a menina em pose de mulher que haveria de fotografar e determiná–la a seguir esta senda – um momento decisivo na sua carreira, recordado em Março deste ano pela documentarista à revista “Time”.
Depois desse périplo europeu regressou aos EUA. Em Nova Iorque captou a agitação dos anos 60, fixou a oposição à guerra do Vietname, deu eco aos movimentos de emancipação femininos e à cultura travesti, e registou os acontecimentos em Times Square, epicentro de um mundo em mudança. Tomou o pulso da sociedade e das suas angústias, seguindo temas tão diversos como a doença mental, o ritual de um baile de finalistas ou a reforma de Clayton Moore, o antigo Lone Ranger, que em 1992, sentado no seu sofá em Los Angeles, posou para a objectiva.
Mark adorava ensinar, e nas últimas duas décadas, duas vezes por ano, deslocava-se a Oaxaca para espalhar a palavra no Centro Fotográfico Manuel Álvarez Bravo. Fiel a intervenções menos convencionais, os amigos sabem que os Natais nunca mais serão os mesmos, desfeita a peculiar tradição instaurada por Mark: todos os anos convidava conhecidos e os seus cães para a sua mítica festa canina, com os donos a formar uma longa fila para ver as suas mascotes fotografadas por Mary.
Doente há vários meses, morreu aos 75 anos em casa, não sem antes terminar o seu 19.o livro, a tempo da efeméride dos dez anos do impacto do furacão Katrina. Por completar ficou o projecto “Tiny”, o nome da jovem prostituta de Seattle fotografada por Mary e filmada pelo marido ao longo de três décadas, e cuja vida deverá dar origem a mais um filme de Martin Bell.