A cidade de Palmira era uma desconhecida para a maior parte de nós até há poucos dias. O oásis que os romanos converteram ao seu domínio há quase dois milénios e onde, através das agências de notícias internacionais, se podia ler no domingo que 400 mulheres e crianças terão sido assassinadas pelo Estado Islâmico. Fica no meio da destruída Síria. País, já agora, que dista apenas cerca de 90 quilómetros do território cipriota, ou seja, da fronteira externa da União Europeia.
Numa Europa já desabituada de saques, conversões forçadas e homicídios em massa, o que se passa agora nas suas fronteiras, tal como o que se passou nos Balcãs há pouco mais de duas décadas, vem reforçar a memória da nossa própria história. E vem testar de forma crua e sangrenta a capacidade e a vontade da União Europeia. Quanto estamos dispostos a pagar e do que estamos disponíveis para prescindir para parar atrocidades à porta da Europa, se é que a porta da Europa não é já uma expressão demasiado datada e artificial?
Uma das grandes marcas da evolução ocidental foi a de remeter a dimensão religiosa para o seu domínio privativo. Levou séculos e milhares de vidas humanas, mas fez-se. A laicidade política europeia, que permitiu, por exemplo, reconhecer e construir um direito baseado na igualdade da pessoa e na sua defesa contra o arbítrio do poder, seja ele qual for, é uma conquista civilizacional. Não entendida como a vitória do ateísmo sobre a fé, mas entendida como a superação das diferenças de fé enquanto base legítima da decisão política e da igualdade de direitos e deveres.
Entretanto, as últimas décadas têm tornado o que parecia óbvio muito menos claro. A Guerra Fria acabou e o “imperialismo ocidental” descobriu que tinha e, provavelmente, sempre tivera uma contraparte séria no imperialismo islâmico, nas suas variadas manifestações. Afinal, a “barbárie dos persas”, de que se queixavam e com quem se comparavam com vantagem os clássicos do pensamento político europeu, parecia nunca ter desaparecido. E o que fazer quando um novo movimento, muito mais ameaçador e organizado, aproveita a desordem manipulada, quando não suscitada, pelo Ocidente nas suas próprias terras e avança numa cruzada, da qual até a mal-afamada Al-Qaeda se afastou, para impor um califado universal, com ramificações e controlando territórios também em África, no Afeganistão, Paquistão e Filipinas?
Um processo acompanhado por atrocidades sobre civis infiéis, ou seja, todos aqueles que não partilham da sua interpretação do islão. E por regras como a proibição de as mulheres muçulmanas saírem de casa (já as cristãs podem ser livremente convertidas em escravas sexuais), a proibição da música e do ensino da literatura ou da afixação nas montras de fotografias ou de simples manequins… Aplicando aos infractores penas que esclarecem quanto aos seus padrões: queimados vivos, despenhados de edifícios, apedrejados, crucificados…
Para quem ainda achar que todas as guerras de hoje são longínquas e desconhecidas, há 90 quilómetros que o desmentem.
Professor da Faculdade de Direito de Lisboa. Escreve à terça-feira