“Não custa não ser infalível mas a sensação de que podíamos ter feito diferente”

“Não custa não ser infalível mas a sensação de que podíamos ter feito diferente”


Cirurgião pediátrico recebe o Prémio Miller Guerra.


O avô Francisco Gentil, fundador do Instituto Português de Oncologia, é uma referência nacional na humanização dos cuidados de saúde. Mas António Gentil Martins diz que a maior inspiração nesta matéria foi o pai, que não chegou a conhecer, mas um dia, no banco de S. José, levou ao extremo a dedicação ao doente. O médico, de 84 anos, recebe amanhã o Prémio Miller Guerra, no valor de 50 mil euros, uma distinção instituída pela Fundação Merck Sharp & Dohme e pela Ordem dos Médicos para distinguir a dimensão humanista da medicina em Portugal. 

Ficou surpreendido com a distinção?
Surpreendido, verdadeiramente, não fiquei. Fiquei muito contente por me terem candidatado. Sei que éramos 18, o que é óptimo porque quer dizer que há muita gente que entende a medicina como ela deve ser entendida. Foi uma honra para mim ter ficado em primeiro lugar. 

O que é que vai fazer com o prémio?
Honrar compromissos, mais nada.

A humanização foi sempre uma preocupação na sua carreira?
Foi, talvez até exageradamente. A família foi um bocado prejudicada e eu talvez não tenha encontrado o equilíbrio mais correcto, o que hoje lamento.

É uma mensagem para os jovens médicos?
Creio que sim. O médico tem de ser dedicado ao doente. Já o meu avô, que fundou o Instituto Português de Oncologia, dizia que o doente era o rei, mas tem de haver equilíbrio. O estatuto da Ordem diz uma coisa que creio não haver em mais nenhuma profissão: que o médico pode pôr os seus interesses à frente dos próprios. Mas a família também é importante e não nos devemos esquecer disso.

O seu avô foi a sua principal referência na humanização da medicina?
O meu avô foi uma grande referência, mas devo dizer que a pessoa que mais me marcou foi o meu pai. Perdi o meu pai muito cedo, morreu quando eu tinha três meses, mas a minha mãe transmitiu-me tudo o que ele pensava sobre a forma de estar na medicina. Um dia, o meu pai estava no banco de S. José e, na altura, as transfusões de sangue eram braço a braço. Apareceu um doente que tinha de ser operado e não havia ninguém do grupo sanguíneo do doente a não ser o meu pai. Como não era opção dar-lhe sangue através do braço enquanto o operava, não fez mais nada: tirou o sangue do pé, o que nunca ninguém ali tinha feito. Pôs outra pessoa a dar à manivela do equipamento que então se usava nas transfusões, chamado juvelet, e deu sangue enquanto operava. Nunca teria pensado numa coisa assim. É o maior exemplo de dedicação. Por vezes implica imaginação e até sacrifício próprio. 

O doutor nunca fez nada assim, mas nas suas memórias conta que chegou a ir de pijama para o Hospital Dona Estefânia.
E mesmo saído da cama chegava ao hospital antes do médico que estava serviço à urgência! Eu pedia ao pessoal para que, se acontecesse alguma coisa com um doente meu, fosse de dia ou de noite, telefonassem. Sempre entendi que era responsável pela vida daquela pessoa. Quando me ligavam a meio da noite, e se a dúvida era grande, imediatamente metia o fato por cima do pijama e ia logo para o hospital. Como morava no Parque Eduardo XVII, eram dois minutos de carro.

E tomava o pequeno-almoço ao volante enquanto ia pôr os filhos à escola…
Fiz muitas coisas dessas. E nas férias, quantas vezes as passei na barraca da praia a fazer coisas para a Ordem dos Médicos. Dou graças a Deus por não ter tido um quarto mandato, estava completamente esgotado com a vida de hospital, consultório e Ordem.

Conheceu o médico Miller Guerra, que dá nome a este prémio?
Conheci razoavelmente, foi bastonário antes de mim, até ao 25 de Abril. Depois da revolução, durante dois anos não houve Ordem. Houve um processo para decidir se ficava a Ordem ou o sindicato, e só então é que eu assumi. Era um homem muito dedicado aos doentes. E há outra coisa curiosa: foi o relator de um relatório das carreiras médicas de 1961. Neste documento, Miller Guerra defendia que Estado, sector social e privado deviam trabalhar complementarmente. E que devia haver liberdade de escolha. E que devia haver pagamento por acto médico. Ou seja, quem trabalhava mais, ganhava mais. Apesar de ser defensor deste sistema, que eu também defendi, depois da revolução apoiou o projecto de António Arnaut, de um serviço de Estado, um movimento que foi muito motivado pelo ambiente que se vivia na altura. Correia de Campos, que é um defensor do actual sistema, já admitiu que seria interessante saber se o país estaria melhor se o sistema fosse outro. Em França, Holanda ou Bélgica, é esse sistema de medicina convencionada que existe, por oposição ao serviço público de saúde que temos em Portugal, inspirado no modelo britânico.

No campo da humanização na medicina, acredita que a sua geração tinha algo que esta não tem?
Havia uma coisa importante: na minha altura, a vocação era importante para ser médico, e hoje só conta a nota. Quem ia para Medicina era porque gostava, e hoje em dia vai só quem tem as melhores notas. Quer goste, quer não goste. Pode ser um Prémio Nobel, mas se calhar não é a pessoa que eu quero para me tratar, porque não consegue desenvolver uma relação de empatia com o doente, que é o mais importante.

Tem encontrado muitos médicos mais jovens que parecem não ter vocação?
Tenho encontrado muitos bons médicos, mas também alguns que são o oposto. Porque são fixados nos horários, no entra às tantas e sai às tantas, nos protocolos, e tornaram-se funcionários públicos que não honram a medicina. 

O que é mais importante na relação com o doente?
Acima de tudo ser verdadeiro, mas também não ser estupidamente agressivo. Até porque os médicos também têm dúvidas, não são infalíveis. E por isso também não vale a pena, mesmo que seja uma situação muito grave, tirar toda a esperança ao doente. Não podemos enganar o doente, mas também não temos de dizer a verdade de forma brutal. 

Custa não ser infalível, não conseguir curar sempre?
Acho que isso é algo que temos de aceitar. O que custa muito é fazer um disparate, cometer um erro. E nem tem de acontecer: custa ter a sensação de que, se tivéssemos feito outra coisa ou de outra maneira, mesmo estando na altura convencidos de ter feito o melhor, o desfecho poderia ter sido diferente. E quando as coisas correm mal, é inevitável pensar isso.

A Ordem tem alertado para os riscos do esgotamento dos médicos, o chamado burnout, consequência da pressão sobre o SNS, e de isso aumentar também o risco de erros.
Devo dizer honestamente que não aceito isso muito bem. Quando as pessoas vivem uma profissão a sério, algumas coisas têm de ser secundárias. Isso não pode ser desculpa ou então não está em condições para trabalhar. Agora, naturalmente que os médicos têm de ser bem tratados. Há uma coisa que é preciso perceber: sempre houve santos e mártires, mas a generalidade das pessoas não o são. A generalidade precisa de ser recompensada pelo seu trabalho, pelo seu esforço, pela sua competência para se sentirem motivadas e para render o máximo. Se for maltratado, tiver más condições de trabalho, se for mal remunerado, é evidente que vou estar menos motivado.

É isso que tem acontecido aos médicos nos últimos tempos?
Sem dúvida. E perante as dificuldades, muitos têm emigrado. O que para os sistemas de saúde dos outros países é óptimo: sai-lhes baratíssimo contratar médicos que nós andámos a formar.

O que gostava que acontecesse no SNS na próxima legislatura?
Defendo o que sempre defendi: seja que partido for, temos de mudar de modelo na saúde. Ir para um sistema de medicina convencionada, com um seguro nacional de saúde, universal e obrigatório, em que a pessoa desconta uma parte do seu ordenado para ter acesso à saúde, seja no privado, no público ou no social, e com liberdade de escolha. É o sistema que existe noutros países europeus com sucesso. Quem ganha mais, paga mais. Quem ganha menos, paga menos. Quem não tem rendimentos, o Estado cobre com os impostos de todos. 

Qual é a vantagem desse sistema?
A liberdade de escolha. E acredito que sai mais barato. Porque se for ao médico em quem acredita e na hora certa, não há os exames e as repetições que existem hoje.

Como é que as pessoas podem escolher o melhor médico?
Tem de haver regulação e responsabilização. Mas não percebo como é que podemos aceitar não ter liberdade na saúde.

O PS volta a inscrever a promoção da liberdade de escolha no projecto do programa recentemente apresentado. Também fazia parte do programa do governo. Será desta?
Não. É impossível no actual sistema, a própria ministra do PS Ana Jorge o disse. Hoje, as pessoas têm de ir ao médico da zona onde vivem e isso não faz sentido. E mais: na Holanda, na Bélgica e em França, onde existe este modelo de seguro de saúde obrigatório, não existem listas de espera. E isto pode sair mais barato, se houver concorrência.

Um dos argumentos que houve no debate dos anos 70 contra esse modelo era que se estaria a mercantilizar a saúde, a dar dinheiro ao privado, que tem como missão o lucro.
O que é que isso interessa se o Estado gastar menos e as pessoas forem mais bem servidas nas suas necessidades? Que interessa quem ganha dinheiro se fizer um bom trabalho? Claro que pode haver médicos a ganhar muito dinheiro com um sistema assim mas, se forem os melhores, ainda bem. Porque vai haver um estímulo para todos os médicos e serviços serem melhores. 

E para o país, o que desejava?
Que houvesse valores. Defendo a família, sou católico e penso que valores que o catolicismo a mim me deu, de solidariedade e justiça, são importantíssimos, mesmo para quem não for católico. Acredito em Deus, família e pátria. Temos de acreditar no nosso país. Eu teria sido milionário se tivesse aceitado em tempos o convite do maior cirurgião plástico do mundo, que queria que fosse para o México para um dia o substituir. Não o fiz porque queria ser útil no meu país. 

Deus, família e pátria é quase um lema salazarista. Preferia a vida no Estado Novo?
Não digo isso, mas tanto me faz que me achem salazarista ou não. Salazar cometeu muitos erros mas morreu pobre, não andou a viver à custa do país. Claro que fez coisas absurdas. Lembro-me de uma enfermeira não poder casar sem autorização do chefe de serviço. Censuro a repressão da liberdade, sempre, mas que liberdade temos hoje? Vemos pessoas que se dizem pela justiça e equidade social e têm vencimentos e reformas milionárias. O fosso entre ricos e pobres é cada vez maior. O regime anterior era mau, mas o actual também é péssimo.