Qual César, a cada actriz o que é de cada actriz. Falar de Ana Guiomar é falar de Marta Navarro, a rapariga de voz estridente que surge numa série de Verão dos “Morangos com Açúcar”, essa escola que fez surgir uma geração de actores que viria a escalar as altitudes da televisão nacional.
Ainda assim, convém dizer que não estamos na presença do habitual 90-60-90 que origina o papel da rapariga vistosa que emprega as vestes de sensual da novela. Aos 26 anos, Ana Guiomar tem uma carreira de fazer inveja a muitos que agora tomam as rédeas da representação.
Noutros palcos, é no Teatro Aberto que se destaca, onde o talento demonstrado já lhe valeu uma nomeação pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), e “Vénus de Vison” valeu-lhe uma nomeação para Melhor Actriz de Teatro para os 20.os Globos de Ouro, que amanhã acontecem no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.
Talvez não venha a ser estrela da red carpet, mas apostamos que Guiomar até agradece. A mesma a quem já chamaram Chalana no decorrer de uma peça, a mesma que gostaria de interpretar uma gótica porque é o seu oposto. Uma conversa com pouco cinzento.
É curioso que toda a gente diga que começou a carreira nos “Morangos com Açúcar” quando, na verdade, participou numa série da RTP…
Acho que as pessoas estão certas, o que fiz foi apenas um episódio, não conta. Era muito miúda, não tinha noção de nada…
Não sente que tenha sido importante?
Nem por isso, foi só uma coisa “olha, estou de férias, deixa–me lá experimentar”.
Como é que isso se concretizou?
A minha mãe é maquilhadora profissional. Sempre a acompanhei para programas de televisão, novelas, séries, entre outras coisas. E sempre lhe disse que gostava de experimentar, que queria ganhar o meu dinheiro. Então acordámos inscrever-me numa agência, mas só podia trabalhar em período de férias. Foi o que aconteceu nesse caso. Não me lembro bem, mas foi um papel mesmo pequeno, quase nem falava.
No entanto, presumo que esse acompanhamento da profissão da sua mãe tenha tido alguma relevância.
Isso, claro, foi o que me levou a querer experimentar, sem dúvida nenhuma. Comecei a acompanhar a minha mãe por volta dos nove anos. Ela fazia aqueles programas do género “A Linha da Sorte” e afins. Adorava aquele ambiente de bastidores, muitas pessoas, conhecia os apresentadores que via na televisão, mas nunca fui muito deslumbrada pela fama. Gostava era de perceber como é que aquilo funcionava, as câmaras e tudo mais, aquilo fascinava-me.
© Antonio Pedro Santos
Depois passou para o outro lado, com os “Morangos com Açúcar”.
Sim, e aí já fiz casting, daqueles enormes que se faziam no Vasco Santana, ali na Feira Popular, com filas a perder de vista. Fiz o casting em Novembro e chamaram-me em Maio para começar a gravar a série de Verão.
Recorda-se do casting?
Foi horrível. Parecia uma metralhadora a falar, cheia de ritmo, a querer dar o máximo, fosse bom ou mau… Acho que devia ser muito mau [risos].
E aí já tinha uma noção aproximada do que ia encontrar na novela, certo?
Nem por isso, os “Morangos” estavam a dar há relativamente pouco tempo. Aquilo ainda não tinha o sucesso que mais tarde veio a confirmar-se, ou seja, ainda não era aquela coisa do “vou fazer os ‘Morangos’, vou ser uma estrela, pôr extensões, unhas de gel e ter roupas de borla”. Sinto que as pessoas que depois foram chegando vinham com essa atitude, algo que, na altura, nos irritou um bocado. Éramos miúdos e tudo era um drama, vivíamos as coisas com muita intensidade.
Como é que vê isso hoje?
Vejo com alguma piada. Provavelmente teria feito o mesmo: se estivesse em casa e me dissessem que ia fazer os “Morangos com Açúcar”, teria achado espectacular. Comigo não foi assim. Cheguei na primeira série de Verão, ia ficar dois, três meses, mas depois fui ficando e foram três anos e meio.
Foi um capítulo importante da sua vida, por certo…
Obviamente, só tenho boas memórias. As zangas tiveram muita importância, aquilo era quase um “Big Brother” adolescente, mas essa parte as pessoas não viam.
Tinha 14 anos na altura. A escola acabou por ficar para trás?
Fiz uma coisa bastante errada, mas que não teve a ver com a televisão: foi ter ido para o agrupamento de Economia quando era muito má naquilo, só porque tinha medo de perder as minhas melhores amigas – foi muito estúpido, não façam isso.
Depois voltei a fazer o secundário em Letras e aí mudei de escola, porque aquela onde estava era muito exigente e não me reconhecia o estatuto de trabalhador-estudante. É assim, foi bastante difícil, podia ter tido muito melhores notas do que aquelas que tive, efectivamente, mas a verdade é que depois comecei a dedicar-me à representação e acho que fiz bem.
Gostava de prolongar os seus estudos?
Sim, tenho pensado bastante nisso ultimamente. Ir para a universidade era algo que me ia deixar feliz, sinto que me faz falta, não que tenha algum tipo de insegurança, mas porque me ia preencher.
E sabe o que gostaria de seguir?
Não sei, teria de ser algo ligado à minha área. Não quero o Conservatório. Às vezes acho que as pessoas que começam por ali entram em choque com as pessoas que se iniciaram na televisão e percorrer aquele caminho todo novamente ia fazer-me mal.
Diz isso por ser uma cara conhecida?
Não, tem mais a ver com os ideais, não são os meus. Respeito e percebo aqueles ideais, mas agora é algo que não me interessa. Talvez alguma coisa na Faculdade de Letras, Estudos Teatrais, Dramaturgia ou uma coisa assim.
Seguiram-se uma data de produções televisivas, após ter saído dos “Morangos com Açúcar”, tantas que quase podíamos dizer que é antiga nas telenovelas.
Que horror, não sou nada.
Quando digo antiga, refiro-me à experiência que já tem, apesar de ter apenas 26 anos. Como lida com isso, tendo em conta que há actores mais velhos do que a Ana que ainda agora estão a começar?
Isso acontece porque as circunstâncias da vida os levaram a começar agora e, se calhar, se tivesse ido para o Conservatório, a ordem natural seria estar a começar agora e a fazer, possivelmente, umas peças. Há vantagens e desvantagens, há sítios onde gostava de chegar que é muito difícil, assim como há lugares onde essas pessoas gostavam de chegar e que, para mim, é muito mais fácil. Isso fica um bocado camuflado pelo preconceito e eu não sou nada assim, penso que as pessoas devem fazer aquilo que lhes apetece. Para mim, a lógica é o estar à vontade, ou não, com o que estou a fazer. Aí faço ou não faço. Depois, desde que mantenha as minhas crenças e a minha consciência, está tudo bem. Já me estou a desviar um bocado da pergunta…
Perguntava-lhe se sentia antiga, e não leve a mal a expressão.
Sinceramente, não sei. Encaro todos os trabalhos que me chegam como uma vitória, ligo sempre à minha família toda como se fosse a primeira vez.
E eles dizem-lhe algo do estilo “Ana, mas isso é a tua profissão”?
Exacto. “Vou fazer uma novela”, como se isso não fosse o que faço sempre, mas a questão é que penso sempre que é mais uma conquista, e esta é diferente… esse género de coisas.
Acaba efectivamente por ser sempre diferente?
Sem dúvida, sempre diferente. Isto é tudo muito efémero, sabes? Ter uma continuidade é muito importante porque acabo uma novela na sexta--feira e, na segunda, já ninguém se lembra de mim.
Isso parece-lhe uma condição da profissão ou está a falar de si em específico?
É a condição de quem trabalha em televisão. As pessoas associam-nos às personagens, mas as coisas são demasiado rápidas, ou seja, ninguém se lembra do que fiz no episódio de ontem. Fazer televisão é como um feed do Facebook, já não me lembro do que escrevi ontem. É tudo entretenimento. Depois cabe-nos a nós ter assuntos para as pessoas não se esquecerem.
De todos esses projectos televisivos – vamos excluir os “Morangos com Açúcar” desta pergunta –, há algum que guarde com mais carinho ou em que acha que deu um salto qualitativo grande?
Sim, há uma em que acho que comecei mesmo a ganhar ritmo, noção de texto e de trabalho. Foi o “Perfeito Coração”, com a Ana Nave. Houve ali qualquer coisa que me despertou uma consciência que me fez entender o quanto gosto de fazer isto. Foi extraordinário. Gosto de tudo aquilo que fiz, o “Conta-me Como Foi” está no meu coração, cheguei a outros públicos, o que nem sempre é fácil. Mas depois do “Perfeito Coração”, apercebi--me de que era capaz de fazer tudo, “venham coisas”, era o que pensava. Sinto que dei um salto.
Mencionou a Ana Nave. Criaram uma relação distinta?
Sim, resultou muito bem, chegávamos ao estúdio sempre meia hora mais cedo para passar as cenas todas, havia uma compreensão especial, não sei explicar. Além disso, gostei porque o look da personagem era distinto. Era ruiva, depois usava aquelas botas pretas muito altas que não têm nada a ver comigo. Isso agrada-me, não gosto de fazer coisas só para estar bonitinha. Adorava fazer uma gótica, por exemplo, por nenhuma razão em especial.
Essa era uma personagem com uma personalidade forte, já fez outras bastante cómicas. O que acha que tem que faz com que lhe atribuam esse género de papéis?
Na televisão escolhe-se muito as pessoas pelo que passam, pela sua energia, não arriscam muito. A rapariga que faz o núcleo cómico nesta telenovela nem sempre é a que faz de sensual na que se segue. Ficamos algo estereotipados, mas também nos cabe a nós dizer que não a algumas coisas.
Relativamente a este “Mar Salgado”, está satisfeita?
Estou muito feliz, é uma coisa totalmente diferente. As pessoas na rua até me dizem que não tenho piada nenhuma e que pareço mais gordinha na televisão, mas não levo nada a mal, é um elogio óptimo, porque é uma personagem muito mais por baixo, tem uma fisionomia diferente daquilo que tenho, está grávida, é mesmo bom. E não se pode dar ao público sempre aquilo que ele quer, tem de ter algum gozo… Se assim não for, sou refém do público e sou apenas uma figura pública– que não era o que eu queria.
Daí que esteja a tentar evitar esse rótulo, sobretudo através do teatro?
Não sei se estou a tentar, pelo menos não é uma coisa consciente. Cada projecto é um projecto e ainda hoje agradeço a oportunidade que me foi dada. Não é nada fácil darem estas hipóteses a gente nova, sobretudo que vem da televisão. Claro que adorava trabalhar com a Mala Voadora, com a Cornucópia, mas nem sempre é muito possível. Mas o facto de o Teatro Aberto me ter aberto esta porta foi muito importante, sinto-me segura por ali.
Foi um convite directo do João Lourenço?
Fui fazer uma pequena audição para “A Purga” porque, segundo o João, ele e a Vera [San Payo de Lemos] viram-me no “Conta-me Como Foi” e acharam que a minha fisionomia seria ideal para fazer o papel da Irene Cruz mais nova, e correu muito bem.
Foi precisamente com “A Purga” que foi nomeada para o prémio da SPA. Achava possível?
Nos primeiros ensaios, confesso que achei que não ia ser capaz. Andei ali duas semanas a ganhar coragem para dizer que ia desistir, mas depois lá me mentalizei. Adorei aprender a pensar e a ver o texto de outra maneira, as ferramentas que o teatro me deu para fazer cenas de choro e mais dramáticas sem me magoar e envolvendo-me nas cenas. Às vezes há aquela coisa do “vou pensar na morte da minha tia para chorar” – isto é um bocado amador, a meu ver.
Como é que se faz, não sendo dessa maneira?
Envolvendo-se com aquilo que há. Se isto for mesmo o caminho da pessoa, vai acontecer qualquer coisa que serve à cena. Eu, por exemplo, não chorava todos os dias. Se fizer uma peça em que tenho de chorar, se for baba e ranho, choro mas, se for só emotiva, há dias em que choro, outros não. Isso é maravilhoso, é um respeito para com a profissão e a profissão também nos respeita, se não estamos sempre a abrir gavetas e caixinhas e há um dia em que vamos ficar malucas.
Sobre “A Purga”, li algures que alguém do público lhe chamou Chalana.
Essa história é espectacular. Usava uns rolos quentes e ficava com o cabelo bastante encaracolado. A certa altura da peça, vinha à frente fazer um diálogo superdramático. Venho com os olhos marejados e estão dois senhores muito descontraídos na fila da frente, estilo a ver o Benfica, e dizem “Olha, parece o Chalana”, isto antes de eu falar.
Não se riu?
Não, se me risse estava tudo perdido, nunca mais podia trabalhar ali, provavelmente. Mas morri um bocadinho por dentro, não tenho a certeza se dei o texto todo, mas morri ali. Eles mandaram uma boca, algo que não se faz, que é horrível, mas, efectivamente, teve graça.
Falando de cinema. Era algo que gostaria de tentar?
Adorava, já tive pequenas experiências no “Salazar” e na “Noite do Fim do Mundo”. No entanto, sinto que gostava de fazer cinema com um bom papel, não quero fazer cinema só por fazer cinema, vamos esperar. Entre uma boa telenovela e um filme que não me interessa muito, mil vezes a novela… Depois ninguém vai ver.
Isso preocupa-a?
Nem por isso, mas gostava que fosse um projecto com o qual me identificasse, com um público, com projecção, com uma personagem que me desse gozo, e que não fosse aquele cinema de aparição, não é um trabalho de mergulhar a sério no filme. O processo do Canijo agrada-me: os actores fazem quase residência, mergulham naquilo, isso deve ser maravilhoso. Aquela onda dos filmes comerciais cómicos que têm surgido… Não é o que pretendo, pode ter graça, posso rir-me a ver, mas não é aquela coisa do “vou fazer cinema”.
Li algures que não se importa muito com o “valor comercial” no que à sua imagem diz respeito. Mantém essa postura?
Isso não é bem uma postura, é o saber trabalhar com aquilo que temos. Se tiver de fazer uma personagem óptima, vou enfiar-me num ginásio e ficar como a personagem exige; agora, 1,90 m nunca vou poder ter. Acho que também não tenho grande feitio para isso, as minhas referências são outras. O valor comercial é algo que agora se trabalha porque o público é cada vez mais jovem, a televisão vende sonhos e as pessoas têm de ser perfeitas. Mas a questão é que não somos e a televisão está sempre a tentar vender que somos. Faz-se uma capa de revista e fica linda, mas está cheia de Photoshop. Dá-me dez vezes mais gozo ser nomeada para um prémio da SPA do que fazer a capa de uma revista.
Essa sua estatura fê-la perder alguns papéis?
Pelo contrário, fez-me ganhar outros, porque os papéis para essas pessoas são quase sempre uma seca. A minha altura faz com que os papéis que têm de ser meus venham até mim.
Ainda não conseguiu atingir a posição de protagonista, de figura central de uma novela. É algo que anseia?
Protagonista a fazer teatro é impossível, tem de ser uma escolha, acredito que vá acontecer mais tarde. Agora, não é algo que anseie assim muito porque esses papéis, por norma, são chatos, grava-se todos os dias, não se pode fazer mais nada, a protagonista ou é muito boazinha ou é muito má, estereotipar faz-me confusão. Aguenta-se muito melhor a novela em núcleos cómicos, isso é que acho graça.