Quo vadis?


É violência pensar que se tem de emigrar e não ter como ir ou saber para onde ir


O destino era Terras de Bouro para tentar encontrar um suposto aldeamento turístico localizado algures em Saim, a aldeia procurada. A curiosidade surgiu ao ver um desdobrável, alusivo ao empreendimento, displicentemente largado num bar de restaurante. Foi pretexto bastante para um passeio por aquelas bandas. Pelo caminho, uma paragem em Caldelas, estância termal, deu azo a descobrir um novíssimo circuito de manutenção, ao que parece nem sequer ainda inaugurado oficialmente, para usufruto de aquistas e não só. O percurso estende-se pelo meio de campos de cultivo, ladeando um riacho que corre ligeiro e cantante, pontuado por uma série de rústicas casinhas, recuperadas só por fora, que seriam antigos moinhos de água. A par do rumorejar da água e da chilreada dos pássaros, só o zumbido da folhagem ao vento, bucolismo total. Só faltou uma pastorinha a tocar flauta. Que paz!

Atravessada a vila de Terras de Bouro, prossegue-se por estradas ziguezagueando serras, ou não se estivesse em pleno território do Parque Nacional, e cirandando por aldeias e lugares parados no tempo e perdidos na distância, onde apenas velhos se avistam, e raros, que os caminhos estão calados e a lavoura mantém as casas desertas. A paisagem é inebriante, o ar límpido como as águas que correm e escorrem aqui e além. O silêncio, entrecortado pelos chocalhos do gado à solta nos montes e por alguma voz à distância, mistura–se com o chilro da ave que cruza os céus e embala-nos numa música quase celestial, como o dizer? De novo, que paz! Que tranquilidade e quanta beleza! Para quem vai de passagem…

Quem aqui vive e labuta habita uma outra dimensão da vida: a pacatez de mãos dadas com a parcimónia do mundo rural. Aqui, o trabalho faz-se de corpo ao sol, o descanso à roda da lareira, quando o frio enregela as carnes e os velhos se remetem à sua condição de coisa usada. “Isto é tão bonito!”, diz–se ao aldeão, enxada ao ombro, a quem se interpela. “É bonito agora, que no Inverno…”, responde. E a conversa segue a de sempre, que “aqui estamos esquecidos”, que “os novos emigraram”, que “aqui, crianças não há”. Que a crise também passou por aqui, que lhes levou o amparo e os deixou à mercê da sorte. Assim se vive nestes paraísos…

A violência social não é só urbana, apenas nas cidades se desnuda sem recato, dá nas vistas. Nas cidades e nas vilas, onde se amontoam pessoas e problemas, onde as desigualdades põem em evidência o risco de pobreza, onde o desemprego rouba dignidade e rendimentos e há emprego que convoca a miséria. É violência social deixar que as aldeias se despovoem e morram lentamente. É violência negar a quem trabalha remuneração condigna, horário compatível, segurança e respeito em troca de exigência. É violência mergulhar no desemprego, sem saída à vista, com mutilação da auto-estima e raiva a remoer brigas. É violência pensar que se tem de emigrar e não ter como ir ou saber para onde ir. A liturgia da violência colhe no caminho das disfuncionalidades, nas famílias, nas escolas, nos empregos, nas ruas, nos estádios, na desagregação social, em suma. Os profissionais da violência espreitam a oportunidade. Os mais vulneráveis sofrem-lhe as consequências. Actuar sobre os efeitos é o que mais se proclama. As causas, essas requerem estudo, atenção, deveriam compelir a definir políticas. Senão, quo vadis?

Gestora
Escreve quinzenalmente ao sábado

Quo vadis?


É violência pensar que se tem de emigrar e não ter como ir ou saber para onde ir


O destino era Terras de Bouro para tentar encontrar um suposto aldeamento turístico localizado algures em Saim, a aldeia procurada. A curiosidade surgiu ao ver um desdobrável, alusivo ao empreendimento, displicentemente largado num bar de restaurante. Foi pretexto bastante para um passeio por aquelas bandas. Pelo caminho, uma paragem em Caldelas, estância termal, deu azo a descobrir um novíssimo circuito de manutenção, ao que parece nem sequer ainda inaugurado oficialmente, para usufruto de aquistas e não só. O percurso estende-se pelo meio de campos de cultivo, ladeando um riacho que corre ligeiro e cantante, pontuado por uma série de rústicas casinhas, recuperadas só por fora, que seriam antigos moinhos de água. A par do rumorejar da água e da chilreada dos pássaros, só o zumbido da folhagem ao vento, bucolismo total. Só faltou uma pastorinha a tocar flauta. Que paz!

Atravessada a vila de Terras de Bouro, prossegue-se por estradas ziguezagueando serras, ou não se estivesse em pleno território do Parque Nacional, e cirandando por aldeias e lugares parados no tempo e perdidos na distância, onde apenas velhos se avistam, e raros, que os caminhos estão calados e a lavoura mantém as casas desertas. A paisagem é inebriante, o ar límpido como as águas que correm e escorrem aqui e além. O silêncio, entrecortado pelos chocalhos do gado à solta nos montes e por alguma voz à distância, mistura–se com o chilro da ave que cruza os céus e embala-nos numa música quase celestial, como o dizer? De novo, que paz! Que tranquilidade e quanta beleza! Para quem vai de passagem…

Quem aqui vive e labuta habita uma outra dimensão da vida: a pacatez de mãos dadas com a parcimónia do mundo rural. Aqui, o trabalho faz-se de corpo ao sol, o descanso à roda da lareira, quando o frio enregela as carnes e os velhos se remetem à sua condição de coisa usada. “Isto é tão bonito!”, diz–se ao aldeão, enxada ao ombro, a quem se interpela. “É bonito agora, que no Inverno…”, responde. E a conversa segue a de sempre, que “aqui estamos esquecidos”, que “os novos emigraram”, que “aqui, crianças não há”. Que a crise também passou por aqui, que lhes levou o amparo e os deixou à mercê da sorte. Assim se vive nestes paraísos…

A violência social não é só urbana, apenas nas cidades se desnuda sem recato, dá nas vistas. Nas cidades e nas vilas, onde se amontoam pessoas e problemas, onde as desigualdades põem em evidência o risco de pobreza, onde o desemprego rouba dignidade e rendimentos e há emprego que convoca a miséria. É violência social deixar que as aldeias se despovoem e morram lentamente. É violência negar a quem trabalha remuneração condigna, horário compatível, segurança e respeito em troca de exigência. É violência mergulhar no desemprego, sem saída à vista, com mutilação da auto-estima e raiva a remoer brigas. É violência pensar que se tem de emigrar e não ter como ir ou saber para onde ir. A liturgia da violência colhe no caminho das disfuncionalidades, nas famílias, nas escolas, nos empregos, nas ruas, nos estádios, na desagregação social, em suma. Os profissionais da violência espreitam a oportunidade. Os mais vulneráveis sofrem-lhe as consequências. Actuar sobre os efeitos é o que mais se proclama. As causas, essas requerem estudo, atenção, deveriam compelir a definir políticas. Senão, quo vadis?

Gestora
Escreve quinzenalmente ao sábado