Rasmussen. “Com os cortes na defesa não faz sentido Juncker falar num exército”

Rasmussen. “Com os cortes na defesa não faz sentido Juncker falar num exército”


O ex-scretário-geral da NATO esteve no Estoril para falar sobre governação global em tempos de instabilidade.


Deixou a liderança da NATO no final do ano passado, mas continua a ser cobiçado pelos media. Ontem no Centro de Congressos do Estoril para falar sobre a actual instabilidade no continente europeu e os desafios globais, o dinamarquês Anders Fogh Rasmussen passou duas horas sentado numa sala a receber jornalistas em catadupa para curtas conversas, policiadas ao minuto por uma das funcionárias das Conferências do Estoril com o ingrato papel de manter os horários. Nos corredores chamavam-lhe “speed dating” das entrevistas. Ao i concedeu dez minutos para aflorar os temas mais quentes dos últimos meses, a começar pelo actual conflito entre a Ucrânia e a Rússia, que “convém a Putin que se estenda no tempo”. 

Estamos a viver uma nova Guerra Fria?
A resposta curta é sim. Mas claro que há diferenças. Durante a Guerra Fria, a União Soviética era a líder ideológica de um campo global comunista e esse não é o caso actualmente, a Rússia está muito isolada. 

À excepção da aliança com a China?
Bom, sim, mas isso é outra história. 

Mais complexa?
Sim, mais complexa, porque também há muita competição entre a Rússia e a China. Hoje a Rússia não lidera qualquer campo global, está bastante isolada, mas ainda assim este conflito pode durar muito tempo, porque é parte de um grande plano russo para reestabelecer a sua esfera de influência entre os vizinhos, para os manter enfraquecidos e dependentes da Rússia, impedindo-os de procurar a integração na União Europeia e na NATO. 

Esse não é também em parte o objectivo da NATOcom a Ucrânia, chamá-la à sua esfera de influência para enfraquecer o grande plano russo?
Não, quer dizer, sim, mas nós limitamo--nos a um princípio básico: cada nação soberana tem o direito de decidir as suas alianças e afiliações. Não é papel da Rússia decidir isso, nem nosso, é da Ucrânia, da Geórgia e dos outros países da região. É completamente inaceitável a Rússia achar que pode ditar as políticas de segurança dos vizinhos, porque não pode. AUcrânia tem o direito a decidir. 

Petro Poroshenko disse ontem que Kiev não está a lutar contra separatistas armados pela Rússia mas contra a própria Rússia e que Vladimir Putin vai invadir o país no Verão. É alarmismo ou pode mesmo vir a acontecer?
Bom, sabemos que a Rússia está preparada ou tem estado a preparar-se para todas as opções, incluindo movimentos militares que podem levar a uma invasão. Agora se o vai fazer ou não não sabemos, só sabemos que mantém essa hipótese em aberto. Mas na verdade é minha opinião que a Rússia não está interessada em invadir o Leste da Ucrânia. Putin pode alcançar os seus objectivos com menos. Simplesmente mantendo este conflito activo ajuda-o a manter a Ucrânia enfraquecida e a impedi-la de aderir à UEe à NATO. Euma ocupação do Leste da Ucrânia sairia muito cara à Rússia, numa altura em que tem bastantes problemas económicos. Por isso, apesar de ser claro que têm todas as opções em aberto, não creio que tentem ocupar a Ucrânia. 

A Macedónia, outro país à espera de aderir à UEe à NATO, tem estado a fervilhar nas últimas semanas. Acha que pode tornar-se a próxima Ucrânia?
Para mim é claro que a Rússia está muito interessada no que se passa nos Balcãs, e isso inclui a Sérvia, o Montenegro e também a Macedónia. Lamento profundamente aquilo a que temos assistido lá, porque há alguns anos foi alcançado um acordo político para pôr fim aos conflitos étnicos internos e portanto é perturbador que estes conflitos estejam a ressurgir. Peço a todas as partes envolvidas que encontrem soluções políticas pacíficas. 

O conflito está a escalar rapidamente…
Depois dos conflitos iniciais registados as coisas parecem estar mais calmas, mas é claro que para um país com aspirações europeias é perturbador assistir a isto. O governo macedónio e a população albanesa têm a responsabilidade de encontrar um acordo político pacífico. 

A nova Comissão Europeia, de Jean-Claude Juncker, pretende criar um exército europeu, em parte por causa do que se está a passar na Ucrânia e do pacto da NATOcom a Rússia de não criar bases militares nas ex-nações soviéticas. Oque pensa desse plano?
[Riso.] Na verdade acho que o primeiro passo europeu deve ser mostrar mais empenho em investir na defesa. Temos assistido a cortes drásticos nos orçamentos de defesa europeus por causa da crise económica e parece-me um bocado teórico falar de um exército europeu se não estão preparados para investir os recursos necessários na defesa. Em vez de falarem disso, deviam primeiro pensar em engrossar os orçamentos. 

Depois da intervenção da NATOna Líbia, em 2011, o país ficou em ruínas e são cada vez mais os líbios que, como os sírios e os eritreus tentam chegar à Europa pelo Mediterrâneo. O que pensa das medidas da UE e da postura, de certa forma draconiana, de governos como o de David Cameron ou de François Hollande, de fechar as portas aos refugiados e dar início a operações de destruição dos botes?
A intervenção da NATOna Líbia e a imigração são coisas muito distintas.

Mas que se tocam, concorda?
De certa forma sim. Acho que a nível europeu são necessárias várias iniciativas neste momento. Uma delas é contrariar o tráfico humano ilegal, o que pode incluir destruir os barcos onde essas pessoas são transportadas, para que os traficantes não enviem essas pessoas para o mar… 

Mas do ponto de vista humanitário isso não equivale a continuar a condenar essas pessoas à morte?
Eu entendo a proposta de romper as redes ilegais de tráfico de seres humanos, é preciso fazer qualquer coisa para impedir que estas pessoas sejam enviadas para o mar. No futuro próximo isso é muito necessário, como é muito necessário reforçar o patrulhamento de fronteiras e a agência Frontex da UE, responsável por essa missão, para ajudar os países daqui, do Sul da Europa, a travar esta onda de imigração ilegal. Posto isto, também acho que é necessário reformar as políticas europeias de imigração, para que essa imigração ilegal possa ser legal. A Europa vai precisar destas pessoas no futuro, porque tem uma população envelhecida e com tendência a envelhecer. E é claro que também é necessário ajudar os países do Norte de África e do Médio Oriente a criar desenvolvimento económico e político mais positivo, que dê a estas pessoas a possibilidade de lá ficarem.

Pouco antes de abandonar a liderança da NATO disse que a organização não se vai intrometer nos combates contra o autoproclamado Estado Islâmico em países como o Iraque e a Síria a menos que o conflito passe as fronteiras sírias e entre na Turquia. Algum outro cenário hipotético pode vir a possibilitar ou a potenciar uma intervenção da NATO na região?
Não, de forma nenhuma. O papel da NATOé defender os nossos aliados, a Turquia é uma aliada e é por isso que só iremos intervir caso este conflito entre em território turco.