Mike El Nite. Distorcer o óbvio com aspiração

Mike El Nite. Distorcer o óbvio com aspiração


“Vaporetto Titano” é o novo EP do rapper que esta semana foi disponibilizado online.


Mike El Nite. Só aqui já nos está a ludibriar. A tendência pela subversão do óbvio, a repulsa pelo fácil acesso, tudo componentes que fazem de Miguel Caixeiro uma espécie de mestre da ilusão. O gosto por nos fintar começa pelos nomes, do artista, dos EP, como quando nos últimos dias de 2013 nos atira à cara o primeiro registo, “Rusga para Concerto em G Menor”. Estamos em 2015 e eis que recebemos “Vaporetto Titano”, segundo EP em modo aspirador, a sugar o cotão do que satiriza, a autopromoção que assume sem rodeios, a crítica da crítica da crítica. Produto caro que se descarrega da internet gratuitamente, com publicidade incluída, que as televendas ainda são coisa para gerar dinheiro.
Enredo que, literalmente, brotou da estrada, asfalto fora por essas nacionais. Mike El Nite e um grupo de amigos que no ano passado decidiram ir de Lisboa até ao festival Músicas do Mundo, em Sines, mas que o fizeram de bicicleta, meio de transporte preferido do músico. “Andávamos a brincar com essa cena dos anúncios, tipo ‘compre já, produto não incluído’. Aí surgiu-me o conceito. É uma sátira à autopromoção e ao purismo das pessoas que dizem que não se vendem, quando é certo que toda a gente se vende. Só por estar a falar contigo estou a vender o meu peixe, mais vale assumirmos a coisa, ainda que estejamos a dar música de graça, como é o meu caso. Do género ‘sim, estou-me a publicitar, este é o meu anúncio’”, afirma.

Fala como rima, com a mesma vontade de exterminar o “diz que disse” e os canais mais previsíveis da produção artística. Essa forma de seguir sempre do outro lado da rua é algo inerente a Mike El Nite, pelo menos assim parece ser desde miúdo, desde o tempo em que o Vaporetto Titano nos obrigava a saber o seu anúncio de cor. “A minha avó costuma contar uma história engraçada. Era miúdo, estava a ver os anúncios das televendas, muito calado, e no final dizia ‘aldrabão’. É por aí, o Vaporetto Titano remete para uma coisa que toda a gente conhece, que todos os portugueses identificam, isso interessa-me.”

Costuma dizer-se que ninguém joga à sueca sozinho. À falta de parceiro a coisa não avança, quase como jogar à parede sem alguém para nos tramar e fazer correr. Não é que haja falta de parceiros de rimas, a crew ASTROrecords, a que pertence, é um colectivo em expansão no hip-hop nacional, mas mesmo aí Mike El Nite parece ser um lobo solitário. Isso conduz-nos até ao estilo métrico e à complexidade das rimas, que no seu caso buscam referências que nem todos entendem. “São as minhas ideias e são coisas que gosto de mencionar. Gosto que as coisas não sejam 100% claras, gosto que as pessoas dêem uma volta ao que estou a dizer, mas também não quero que as pessoas achem que as considero burras, até porque dou referências relativamente pop, acessíveis”, explica Nite.

Diz que nunca o acusaram de ser presunçoso a esse ponto, mas aproveita para contar uma história recente que talvez ajude a entender melhor o que por aqui se passa, através de uma conversa com o rapper e amigo Baked Donuts, também do colectivo ASTROrecords. “Ele disse algo que talvez seja verdade e acho que sofro um bocado desse mal. ‘Também não podes ser snob, tens que ver que toda a gente vai ouvir, não vais escrever só para as pessoas que achas que vão ouvir e que portanto vão perceber’, disse-me. Em certa medida concordo.”

Puxa a brasa à sua sardinha que este “Vaporetto Titano” acabou de ser adquirido. A humildade surge até no próprio EP. Ora peguemos no exemplo da segunda faixa, “Ye Rite”. Aqui o rapper fala--nos de massagens ao ego, das manias que existem no hip hop, bem ou mal. Nite dá mais uma vez a volta ao texto.  “Reparaste que o Rite está escrito como ritual, rito, e não no seu sentido original. Todos os rappers dizem que são os melhores, isso faz parte do egotripping, mas nem todos se sentem os maiores, às vezes, entendes? Quis deixar esse paradoxo no ar.” Esse e mais quantos? Ye Rite.