Berardo. O olhar do coleccionador que sabe o que quer para o futuro

Berardo. O olhar do coleccionador que sabe o que quer para o futuro


Veste a pele de curador pela primeira vez para apresentar obras inéditas, a partir de hoje. O futuro? Logo se vê.


“Culture for life”, lê-se no pin (oficial do museu) enfiado no blazer preto de José Berardo, uns centímetros acima dos seus óculos escuros. Uma daquelas expressões à inglesa que definem tanto a sua história como uma preocupação do empresário com o futuro da cultura em Portugal. “Gostava de mostrar alguns masters estrangeiros aos alunos em Portugal.Ir a um museu é um direito, tal como ir à praia”, afirma. O primeiro de vários piscares de olhos ao próximo governo.

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Não se assumindo como “uma pessoa das artes”, quis mostrar o seu gosto pessoal aos portugueses através da exposição “O olhar do coleccionador/The collector’s eye”, que inaugura hoje. “Queria que se percebesse que o coleccionador está vivo, nunca tendo sido curador. But I know what I want”, assegura, recorrendo aos estrangeirismos – uma característica de quem já viajou por todo o mundo em negócios – e ao humor. São 35 obras portuguesas e estrangeiras feitas a partir de uma “selecção de afectos”, que conta com algumas peças nunca antes expostas, como “A Rusga”(2010), de Nelson Cardoso, ou “Looking” (1996), de MichaelCraig Martin.

O vestuário em tons negros é habitual em Berardo, que fala das suas peças como de obras que deviam estar num museu. “Para as levar para casa tinha de rebentar as portas.” Lá está outra vez o humor. Optando por expô-las no museu a que preside, a vontade de apresentar tudo foi travada por quem realmente trabalha na montagem e na curadoria de exposições, como o director artístico Pedro Lapa. “O comendador seleccionou muitas peças e queria ter muitas mais. Mas o processo passa sempre por deitar fora e construir núcleos de identidade”, diz. Um director, que é também ajudante de Berardo na hora de explicar a história por detrás das obras – desculpa-se com a dislexia – relembrando os nomes da sua colecção – não fosse ele detentor de tantas outras – que chama às aquisições artísticas menos conhecidas do público, as suas “predilecções”. Uma escolha de vocabulário que se comprova com um gesto digno de registo do empresário: um toque leve com a mão na peça exposta de Rui Sanches, não fosse ter pó e perder a graça toda.

Os temas artísticos são variados, não existindo uma organização linear neste olhar. Há espaço para a juventude, com “Spook II”(1998), que, segundo o comendador, “reflecte o que acontece às crianças nos dias de hoje, com cara de teenager e corpo de criança”. Ou para a nostalgia dos tempos da Guerra Fria, com a “Severambia” (1995), de Frank Stella, um “Muro de Alegria”, que contrasta com o Muro de Berlim. Mas é o “Pano de Cena para a Flauta Mágica de Mozart” (1965), do russo Marc Chagall, comprada há dez anos, que faz brilhar os olhos de José Berardo. Um fascínio seu pela pintura moderna e pela imaginação, conta. “Não há limitações para a imaginação. Veja o caso do urinol de Marcel Duchamp.” Esse revirar do estilo dadaísmo (não fosse ele também conotado com algo gozão) pode ser interpretado quase como uma metáfora da situação contratual do Museu Berardo, que termina o vínculo com o governo já no próximo ano. O segundo piscar de olhos do empresário faz-se, sem surpresas, com comédia: “Estou à espera do novo governo para perceber como será.Eu quero que fique, este é [dos cinco que detém em Portugal] o que dá mais lucro.Mas… paciência!”

Omadeirense que aos 18 anos rumou à África do Sul, embora enigmático, já começou a reunir-se com um dos possíveis futuros primeiros-ministros, o secretário-geral doPS, António Costa. “Na segunda-feira tive uma reunião com os agentes culturais de António Costa, mas saí com a ideia de que toda a gente quer dinheiro.” Desabafa, com tristeza, um homem que já foi dos portugueses mais ricos do país, que não quer ser visto como o Tio Patinhas, uma figura de banda desenhada que adorava fitar o seu dinheiro. “Uma pessoa deve ter o privilégio de mostrar as suas obras de arte”, acrescenta.

O recurso humorístico poderia ser uma vantagem para entrar num qualquer tipo de BD, mas talvez não se explique. “Já dizia a minha mãe, se quer atrair moscas, não é com fel, é com mel.” Afinal sim, explica-se. O último piscar de olhos ao próximo líder político dos destinos do país, referindo-se ao turismo crescente em Portugal e à sua preocupação de preservar o património cultural português. “As paredes estão cá, e o mais importante é manter a colecção. Se não, talvez faça o meu museu…”

Um remate no discurso, quase como se de um político se tratasse, antes de terminar a sua palestra sobre a colecção predilecta. Talvez esteja ligado ao seu desejo de construir um museu do azulejo, já sugerido pelo próprio para substituir o Museu de Arte Popular, uns metros à frente do Centro Cultural deBelém. “Tive obras de 1500 na Quinta da Bacalhoa [de que é proprietário] mas ‘I want to do it my way’, não com o Museu Nacional do Azulejo.” Mais um estrangeirismo, mais um piscar de olhos, mas sem sorriso nem “ahahahas” provocatórios.

Até ao próximo dia 29 de Setembro o piso -1 será palco de todo este espírito característico do coleccionador, sob a forma dos seus afectos artísticos de eleição. Um espaço “demasiado pequeno para toda a colecção”, segundo Pedro Lapa.

Quem quiser ver este olhar terá de esperar pelas 18h00.Correcção, 19h00 (a culpa é da dislexia, informa o comendador). E começará por um primeiro lavar de vistas com a “Flesh Nude Behind Brown Door” (1978), de George Segal, com uma mulher nua à nossa espera, de porta aberta.

“As pessoas podem ter vontade de perguntar: How much?”, finaliza o empresário madeirense ao sair do piso, atendendo o telefone à sua “babe”. Não, não é nenhuma piada, é assim que Joe trata a mulher.