Cleptomania. Quando roubar é um impulso sem controlo

Cleptomania. Quando roubar é um impulso sem controlo


A cleptomania está relacionada com o fraco controlo de impulsos e caracteriza-se por não estar associada a um acto premeditado. Desmistificamos a perturbação e explicamos como a lei funciona nestes casos.


A actriz Winona Ryder não pensou duas vezes. Tirou peças de roupa e acessórios de uma luxuosa loja de Beverly Hills, em Los Angeles, e saiu sem pagar. A ex-nadadora francesa Laure Manaudou foi apanhada pelos seguranças com um peluche da Disneylândia, em Paris, que também não pagou. Porque é que estas mulheres, ricas, belas e famosas, precisam de roubar? A explicação está numa palavra: “cleptomania”. Ambas passaram pela vergonha de serem apanhadas em flagrante, mas isso por si só pouco ou nada adianta na maioria dos casos.

{relacionados}

Winona Ryder e Laure Manaudou não planearam os furtos. Roubaram porque sentiram um desejo e não conseguiram resistir. E esse comportamento é uma perturbação mental, que se caracteriza pelo “furto de objectos sem valor monetário”, explica a psicóloga Ana Beirão. Uma perturbação que é uma bola de neve que depois de começar a rebolar é cada vez mais difícil de controlar.

Também na ficção não faltam casos de cleptomania. Um dos exemplos é a personagem Marie Schrader, interpretada por Betsy Brant, na popular série “Breaking Bad”. Mas abordar a cleptomania através do cinema ou da televisão não é garantia de que ficamos a perceber o fenómeno. “A ficção pode ser uma forma de espelhar a realidade”, mas tudo depende de como os protagonistas são retratados: “Personagens e situações bem construídas, em que se consigam observar os comportamentos, as dificuldades e os sentimentos dessas pessoa, podem gerar uma identificação e a procura de ajuda ou suporte para lidar com o caso”, diz a especialista.

A identificação com as personagens de romances, filmes, séries e todos os tipos de ficção poderá ser uma experiência muito forte, mas nem nestes casos a ajuda especializada pode ser descartada: “É natural que a pessoa muitas vezes não compreenda porque age assim, nem de que forma pode dominar esses impulsos e precaver-se contra situações perigosas.”

impulso A cleptomania “deve ser distinguida dos furtos comuns e dos furtos em loja”, avisa Ana Beirão, acrescentando que “estes últimos são deliberados e motivados pelo uso e pelo valor do objecto”. A perturbação tem como principal característica um crescendo de tensão prévia ao furto, seguido de alívio, gratificação ou prazer após o acto: “Não é uma manifestação de raiva ou vingança, nem uma resposta a uma alucinação ou a um delírio.”

Os cleptomaníacos são geralmente pessoas deprimidas e com consciência de que os seus actos são errados. Realizar pequenos furtos contribui para um alívio da tensão interior. Como explica Ana Beirão, “a maior parte dos que têm esses impulsos tentam frequentemente resistir, tendo consciência de que o acto em si é errado e sem sentido, têm receio de uma detenção, e em geral apresentam-se emocionalmente deprimidos ou culpados.”

Outro dos erros que se podem cometer quando se tenta perceber o que é a cleptomania é julgar que se trata de uma perturbação associada a um acto premeditado. Apesar de um cleptomaníaco evitar roubar objectos quando desconfia que pode estar a ser observado pela polícia, “não existe um planeamento nem preocupação com a detenção”. A cleptomania também se caracteriza por ser um acto levado a cabo pelo próprio, sem ajuda de mais ninguém.

A informação sobre a perturbação ainda é escassa, mas sabe-se que existem três comportamentos típicos: “Esporádicos com episódios breves e longos de remissão, episódicos com períodos prologados de furto e de remissão e, por fim, crónicos com flutuações.” Os casos de cleptomania podem durar anos, apesar das possíveis condenações por furto.
Embora, na maioria das situações, os objectos roubados tenham pouco valor monetário, o cleptomaníaco não deixa de estar a cometer um crime com possibilidade de “ser apanhado e sofrer vergonha, tristeza e incompreensão dos outros”. A perturbação pode comprometer a vida da pessoa “com os seus familiares, amigos ou com a justiça, assim como a carreira profissional”, remata Ana Beirão.

inimputáveis? E como é que a justiça portuguesa trata casos em que estão envolvidas pessoas com problemas mentais? “O problema da justiça criminal portuguesa é que a relevância dada às questões do foro mental é quase nula”, defende Saragoça da Matta. Quando está em causa a cleptomania, esclarece o advogado, não existe “inimputabilidade”: “Estes casos geram sim situações de peculiaridade mental que devia ser levada em conta na aplicação de uma sanção.”

A lei penal prevê que, para reagir à prática de um crime, se possam “usar penas para pessoas que são imputáveis” ou se possam aplicar “medidas de segurança”, acrescenta Saragoça da Matta. As últimas são aplicadas aos que “são responsáveis pela prática dos seus actos, mas envolvem qualquer circunstância, nomeadamente da ordem da saúde mental, que não permite uma imputabilidade plena e total”. E os casos desta ordem em que se aplicam medidas de segurança em vez de penas criminais são “materialmente inexpressivos e quase inexistentes em Portugal”, considera.

Há portanto “pouca preocupação” com este tema, defende o jurista. E o que o que acontece em regra é que “as pessoas são todas sancionadas criminalmente com penas de prisão quando o que precisariam era de uma medida de tratamento médico”. E a questão não se resolveria com uma mudança na legislação: “Não há necessidade de mudar a lei porque está perfeitamente adequada.” O problema é que na prática não existe consciência do problema que é a saúde mental. Saragoça da Matta está convencido de que esta questão é de tal forma problemática que é um “tabu brutal”. E deixa a questão: “Que profissionais são sujeitos a testes mentais uma vez na vida? Muito poucos.”