Patrícia Müller. “Há um fascínio por mulheres determinadas”

Patrícia Müller. “Há um fascínio por mulheres determinadas”


Assina o argumento de “Poderosas”, a nova novela da SIC que se estreia esta segunda-feira.


O resultado final é uma espécie de enciclopédia do quotidiano em quase dez mil páginas. Enquanto isso, é esperar para ver o que o binómio mulheres e vingança nos irá trazer. Depois do sucesso de “Mar Salgado”, Patrícia Müller regressa ao “esgotante” dia-a-dia de escrever uma novela. “Poderosas”, a sucessora de “Império”, estreia-se hoje na SIC.

Que podemos esperar destas “Poderosas”?
É uma história de poder no feminino, acima de tudo, uma história de mulheres que chamam a si o direito de decidir sobre a sua própria vida e sobre a vida de outras pessoas, motivadas por um desejo de repor a justiça em relação a algo que aconteceu no passado. São mulheres que se juntam com determinação.

Uma história no feminino. O facto de ser uma mulher a tomar as rédeas da escrita tem um peso extra?
Sim, absolutamente. Seria muito diferente se fosse escrita por um homem. Os homens têm uma visão distinta. São três mulheres que se juntam, com poder para resolver as coisas, e a forma como exercem o seu poder, a maneira como comunicam…. tudo isso, e mesmo a forma como quem escreve comunica com o público, seria muito diferente se não só adoptasse um protagonista masculino como se fosse um homem. Talvez os homens, e não querendo cair em clichés, tenham uma maneira mais evidente de resolver as coisas. As mulheres, por natureza, talvez sejam mais sibilinas.

O que é bom para a trama de uma novela, que tem uma duração longa?
Como é óbvio. Tem de ser mesmo por aí. Se decidissem pegar numa arma e dar um tiro, que, se calhar, era o que um homem faria, não tínhamos novela [risos]. Ainda bem que são sibilinas e um pouco arrastadas. Dá-me jeito. 

As mulheres continuam em maioria em termos de público?
Continuam. Mas todo o público, espero eu, irá identificar-se. Os homens também terão uma certa curiosidade em ver mulheres determinadas. Há um certo fascínio por mulheres poderosas.

Como se inicia uma teia destas?
Começou por ser uma novela para o horário das sete. Falei com a SIC e a ideia era essa. Comecei a investigar, a ver histórias em jornais, a procurar referências. Há uma história que sempre quis adaptar, a de “Thelma e Louise”, duas mulheres que se juntam para fugir do mundo e acabam por matar um homem. No fim, optam pela morte. Parti por aí. Também gosto muito da novela “Quatro por Quatro”, também com mulheres e uma história de vingança. Em vez de duas ou quatro, três mulheres. Ok, queria uma história de justiça, mas não podia ser uma “road novel”. A partir daí surgiu a ideia de uma vingança contra o mesmo homem. Inicialmente, tinha uma cariz mais leve, mas depois decidiu-se que seria para o segundo horário da noite. 

O que mudou em função do novo horário?
Foi uma questão de adensar o argumento, dar motivações mais profundas, um tom mais sério. Muda bastante consoante os horários. Às vezes, nem temos bem a noção. Não só muda o tom como temos mais algumas liberdades, a nível de cenas e sexo, por exemplo, ou outro tipo de comportamentos. Podemos explorá-los de outra forma.

Falava de ter começado a procurar inspiração nos jornais. São boa matéria-prima para um desafio destes?
A realidade é sempre muito melhor do que a ficção. Ainda há pouco descobri uma história num jornal de uma miúda que casou com 12 anos e com 14 deu à luz. Jamais, em tempo algum, me passaria pela cabeça escrever algo com esta sordidez. Chegar tão longe é difícil. Ou, por exemplo, o vídeo das duas miúdas a bater no rapaz. Jamais escreveria algo assim. Nenhuma produtora aceitaria passar algo do género. Uma cena de chapada durante 13 minutos entre miúdos? A ficção, por mais que se dramatize, não chegaria a tanto. 

A realidade não tem essa régua que o argumentista deve ter?
Tem de haver uma compensação moral no fim. Tem de haver um princípio, um meio e um fim. Pode não haver um final feliz, mas tem de haver um fundo moral. É essa a grande vantagem da ficção sobre a realidade.

 O final já está na cabeça de quem escreve quando se lança à primeira página?
Não, vai-se fazendo. Ao longo dos episódios temos hipótese de fazer alterações no elenco, pôr pessoas, tirar outras. As coisas mudam muito. Isto é quase como seguir um ano na vida dos nossos vizinhos. E, durante esse ano, muita coisa acontece. Nascem crianças, morrem pessoas, há casamentos, etc. Há todo este lado de quotidiano que nunca podemos perder.

Jogando também com as reacções do público?
Claro. O público, neste caso, é tudo. Escrevemos para o público e não para nós. 

Na prática, como se concretiza este trabalho de escrita?
É um trabalho diário, de segunda a domingo, sem intervalo. É um disciplina diária. São horas e horas a ver. Quando não estou a ler episódios, já estou a pensar nos que aí vêm. É um trabalho completamente esgotante, com um prazo apertadíssimo para cumprir. A pessoa chega ao fim esgotada. 

Consegue estimar o número de páginas que um trabalho destes pode atingir?
Vou dar um exemplo: cada episódio tem mais ou menos 45 páginas; se forem 200 episódios, imagine. São umas nove mil páginas ou dez mil. É sempre para mais e não para menos. É uma enciclopédia da vida real, daquelas bem grandes. 

Já escreveu para cinema, lançou livros. Como se estreou nesta área em particular?
Começa tudo depois de um curso de jornalismo. Ainda fui jornalista em alguns sítios, na “Elle”, principalmente. Um dia enviei o meu curriculum para a NBP, hoje Plural. Estavam a formar pessoas para começar a escrever e foi assim que começou. Comecei a trabalhar aos 16 a fazer traduções, entrei para a “Elle” ainda não tinha acabado a faculdade e, aos 22, comecei a estagiar neste gabinete de escrita. Depois continuei e fui andando. Primeiro na TVI, e desde há cinco anos na SIC.

Sente uma evolução na forma como o trabalho do argumentista é visto e nas próprias condições de produção das novelas portuguesas?
Sim, o argumentista é fundamental e é hoje muito mais reconhecido. Claro que não somos argumentistas da Globo, não só pelo que recebem, que é absurdo, como pelas condições que têm e o poder de decisão que têm. Ainda estamos um pouco longe disso, da ideia do criador, como no caso também das séries americanas. Ainda somos uma peça da engrenagem, mas o que é bom é que, em Portugal, a engrenagem subiu três níveis. Estamos muito mais profissionais a produzir. Temos uma boa imagem, um bom leque de actores. Todos os factores vão crescendo. Há um cuidado enorme com os textos. Em conteúdos, não estamos atrás da Globo, e eles têm mais 40 anos disto. 

Não havendo tanta autonomia, é fácil gerir os condicionalismos?
Sim, claro. É o trabalho do dia-a-dia. Discutem-se coisas mais de fundo e, regra geral, no começo, quando as coisas estão por definir. Depois temos de confiar uns nos outros. É uma cadeia de confiança. Até agora, sempre houve muita confiança, com muito bons resultados. 

Depois da escrita, costuma seguir o resultado no ecrã?
Claro, diariamente. E tomar notinhas. Isto é uma loucura; são dois anos a viver e a respirar isto. Nada a fazer. Tenho mesmo de seguir.