Gosto de lugares-comuns, precisamente pela razão inversa ao argumento dos que os atacam: um lugar-comum é rigorosamente isso, o espaço onde mais pessoas se podem sentir confortáveis, gente que parte de um conjunto de referências entendidas por todos. Essa é a razão do sucesso de Marcelo Rebelo de Sousa: consegue descodificar assuntos áridos com palavras compreendidas pelas pessoas. Esse talento é a razão da sua popularidade. Depois existe o contrário, uma outra forma de popularidade, se quiserem. Um conjunto de pessoas que prefere distanciar-se do que consideram vulgar. Há os eruditos, claro, uma minoria minoritária entre todas as minorias de que me lembro. E existem também os entusiastas do que é politicamente correcto, os que gostam de escritores, políticos, restaurantes ou roupas que lhes oferecem um estatuto cultural ou social de distinção, um panache. Como escreveu, um dia, António Ferro, o intelectual mais importante do salazarismo, “não me importo de ser como muitos, o que não suporto é ser como todos”.
Penso nisto a propósito de Herberto Helder. As suas palavras, inacessíveis para uma larga maioria de leitores, tornaram-se pela sua morte em palavras glorificadas. No anúncio da sua partida, e agora do lançamento do último livro, com poemas inéditos, multiplicam-se elogios de todos os quadrantes, inclusivamente dos que nunca o leram, dos que não o entendem, dos que jamais o suportariam. O mesmo aconteceu com Manoel de Oliveira; os mesmos que criticaram os seus filmes são os que falam do desaparecimento de uma referência.
É como os últimos anos de Álvaro Cunhal. O seu nome, o exemplo da sua coerência, inteligência e tudo o que faz um homem ser um Homem, era pasto para conversas e elogios. Cunhal detestava isso, disse-mo numa entrevista. Deu-me toda a ideia de que preferia Pacheco Pereira, que o atacou politicamente até ao fim, aos elogios fúnebres dos que deveriam ter sido seus inimigos se o modelo de sociedade que defendia tivesse vingado. Aplaudiam-no porque não tinha qualquer poder, tornara-se um ser venerável porque não temido. Qualquer um dos três, por motivos vários, detestaria os elogios dos que, ao fim e ao cabo, aplaudem a glória e não a obra ou a essência do que foram, aplaudem a possibilidade de eles próprios se convencerem de que estão do lado dos que fogem ao lugar–comum. Manoel, Álvaro e Herberto são três figuras ilustres e veneradas por um certo Portugal que apenas consome e respeita quem já se transformou numa estátua. Esse Portugal criticar-me-ia violentamente se ousasse criticá-las. Herberto deixou de ser inacessível, Oliveira não era chato e Cunhal não defendia uma revolução contra a burguesia.
Hoje publicamos na primeira página o último poema de Herberto, escrito pela sua própria mão. A derradeira palavra é “mão”. E todo o resto do texto é labirinto e procura de luz. Uma procura que é uma condição humana de que parecemos afastar-nos nestes tempos tão mortiços e enganadores. Procurar a luz, exactamente isso – um lugar-comum, uma concessão à facilidade, uma piroseira. Mas era o que precisávamos, é o que precisamos. Se não estivéssemos distraídos a procurar o que não somos, a falar do que não lemos, vimos ou escutámos. Se não glorificássemos apenas o que deixou de existir.