1. Uma certa tarde, pelos finais da década de 90, um advogado deslocou-se a uma secretaria judicial. O objectivo era consultar um processo para dilucidar dúvidas resultantes de notificações incompletas. Pouco passava da hora de almoço. Presentes, apenas um ou dois funcionários. Dirigindo-se ao balcão, o advogado foi atendido por um profissional patentemente alterado pela refeição antecedente. O despautério foi de tal ordem que o mandatário teve de apelar ao magistrado judicial titular da secção em questão. Em vez do desencadear de uma reacção pelo menos admonitória ao prevaricador, ouviu do amável magistrado um pedido para irrelevar o comportamento do funcionário… o infeliz tinha um óbvio problema de dependência, problemas familiares e um horror de outros azares na vida! Uma ladainha de desgraças que levava todos os colegas e os próprios magistrados a ter uma imensa pena do dito. Ao ponto de lhe tolerarem toda a sorte de infracções disciplinares, aguardando que o mesmo atingisse a reforma ou decidisse mudar de colocação! A este “guarda” da coisa pública, investido em poderes de autoridade, não só ninguém guardava como era protegido, nos ilícitos disciplinares, pelos pares e chefias.
2. Na representação de um executado como avalista de uma letra bancária, o cliente jurava a pés juntos que nunca tinha subscrito aquele título cambiário, mas outro, devidamente preenchido com um valor totalmente diverso e referente a um negócio distinto do que era invocado pela entidade bancária exequente. Feitas as provas legalmente possíveis, provou-se que a assinatura do cliente (avalista) tinha realmente sido fabricada, forjada. Absolvido da execução, nenhuma certidão para investigação criminal foi extraída pelo tribunal. Nada aconteceu à instituição beneficiária da falsificação, nem muito menos aos funcionários bancários cujas assinaturas constavam do pacto de preenchimento da letra forjada. Neste caso, o “guarda” judiciário que constatou o crime demitiu-se da tutela da legalidade; e os “guardas” que representavam a reputadíssima instituição (entretanto caída ela própria em desgraça) ficaram impunes, pela falta de guarda que os guardasse.
3. Depois da consulta de uns autos judiciais, o mandatário constatou a existência de uma irregularidade grave que prontamente arguiu em requerimento posto em letra de forma. Passados uns dias, lá chegou o despacho judicial. Nenhuma irregularidade existia, afinal. Não porque juridicamente não tivesse razão, que é, por regra, o argumento das decisões, arrimadas a bilros jurídicos tantas vezes incompreensíveis até aos formados em leis. Mas porque a materialidade dos factos que pessoalmente o advogado havia visto… inexistia! Consultados os autos, a razão era óbvia: os autos tinham sido reconstruídos para os adequar ao dever ser, com renumeração de folhas, intercalação de um despacho que nunca tinha existido, etc. Aqui, como o “guarda” da incolumidade dos autos resolveu, ele próprio, alterar a realidade para a adequar à lei, foi a lei quem ficou sem quem a guardasse.
Estas historietas, banais em mais de 20 anos de foro, demonstram o óbvio: se os “guardas” não forem de boa cepa, por mais que a lei queira, não há guardas que os guardem! Bem ou mal, o sistema assenta na utopia de que cada guarda cumpre rigorosa e escrupulosamente a lei a que jurou lealdade; e na insofismável realidade de que não pode haver um guarda para cada cidadão.
E de utopias vamos vivendo.
Advogado, escreve à sexta-feira