“Esse momento lindo” com Roberto Carlos na cidade maravilhosa

“Esse momento lindo” com Roberto Carlos na cidade maravilhosa


Cruzaram-se na Urca à hora de almoço. Em Setembro de 2014, de visita ao Rio de Janeiro para promover o livro “Judeus Ilustres de Portugal”, a escritora Miriam Assor saudou outro famoso: o Rei, agora de passagem por Portugal


O vinho chileno no Rio de Janeiro sobe como o balão da cantora Manuela Bravo. O resto dos olhos sóbrios deslumbra–se com o que vive à frente do vidro: a baía de Guanabara, havaianas nos dedos dos pés, uma viola nos cinco dedos de um moreno e mãos que seguram cervejas louras na tremenda praia vermelha da Urca. Inesperadamente, tem-se uma branca quando o olhar, que ia regressar ao prato e ao copo, acerta no cliente sentado no recanto esquerdo do restaurante. Despem-se os óculos. Quiçá são as lentes que combatem o sol as causadoras da ideia forte nova parida: convencida de que já nos cruzámos, aliás, que fomos apresentados ou, na pior das hipóteses, pelo menos palavras foram trocadas com aquele senhor vestido de azul dos recém- -nascidos.

A cidade é maravilhosa e encontra-se cheia de encantos mil, indiscutível, mas desta vez também se inunda de interrogações. É um amigo de um amigo? Amigo virtual do Facebook? Terá sido passageiro nos idos anos do trabalho no aeroporto? As dioptrias só regulam a vista para ver ao perto, ao longe está salva e consente, à larga, o trautear do início do triunfo da Madalena Iglésias: sei quem ele é, contudo resta descobrir de onde. O sabor tropical do salmão grelhado irrepreensível tenta refrescar a memória de uma esquecida desatenta. Antes do segundo ou do terceiro gole do firme e frutado “Cefiro” faz-se marcha–atrás na estação e a consciência não tarda em repreender: um dia cumprimentaste uma criatura baixa com “tudo em cima, pá?” e era o ministro da Cultura deste país. Em Madrid, a tentar colocar o cartão na ranhura da fechadura do quarto do hotel, outro baixo precisava de ajuda. Foi-lhe dada, e depois, pelo sorriso míope que pareceu familiar, saiu a questão. “Conheço-te?” Pois conhecia, dos filmes “Beijo da Mulher- -Aranha” e “Amigos de Alex”. William, de apelido Hurt – evidentemente, sem perdão. Eis, pois, razões suficientes para se ter cautela com precipitações. Melhor ficar no escuro do que correr o risco de cumprimentar efusivamente alguém por engano.

Fez-se luz. E não foi no maior estádio da Europa. Carlos. Em Portugal, a monarquia vive em Eusébio da Silva Ferreira, mas aquele ali é o rei do Brasil, terra da minha amada mãe. Carlos. Carlos. Dele sabia tanto. Canções e histórias e casamentos. Faltava lembrar o primeiro nome, afinal, o principal, porque assim, Carlos, sozinho, não lhe oferta a fama justa. A culpa do descuido ancorava nas costas da casta cabernet sauvignon e do nervoso miudinho que crescia a cada respiração. Carlos. Carlos. Na cabeça, um gira–discos ininterrupto, a tocar, a tocar com passagens dignas de disc jockeys de primeira linha, “O Calhambeque”, “Café da Manhã”, “Lady Laura”, “A Montanha”, “Cama e Mesa”, “Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos”. E “Mulher de 40”, que desde há uns tempos para cá é ouvida com mais entoação, e “Quero que Tudo vá para o Inferno”, que se adapta à situação nacional.

Pelas músicas anteriores até seria possível domesticar a vontade de largar o peixe e baco engarrafado no Chile, mas a segunda parte do refrão do êxito “As Baleias”, decorada ainda no tempo do cabelo curto (“O gosto amargo do silêncio em sua boca/ Vai te levar de volta ao mar e a fúria louca/ De uma cauda exposta aos ventos/ Em seus últimos momentos/ Relembrada num troféu em forma de arpão”), teve efeito de saída de emergência. Partir da cadeira, e rápido, em direcção ao Carlos, finalmente também Roberto.

Não restam dúvidas. Afirmativo. Uma republicana diante do monarca brasileiro das composições em verso, que encanta em português, castelhano e inclusive em hebraico. A fã, entre infinitas milhares, leva a letra do poema “As Baleias” na cabeça. A melodia, nem por isso. O ritmo descarrilou. O rei sorri, espantado. Ouve. É paciente e misericordioso. A cadência musical está errada. Correctíssimo. “A Cabana” do José Cid, que continua junto à praia, entrou na laringe sem ser convidada. Pergunta-se, não por tique de profissão nem para limpar o erro do tamanho da dívida portuguesa. Queremos saber a data do regresso a Lisboa. Resposta franca de um crente que distribui flores nos finais dos concertos: “Um dia, se Deus quiser.” O Criador há-de querer – numa das primeiras vezes que quis, anos 80, ele lá estava em Portugal. E Deus, no Maio seguinte ao encontro, quis de novo.