Representantes do povo ou moinhos de orações?


No Tibete, as versões dos moinhos variam dos grandes maquinismos dos mosteiros às pequenas maquinetas de mão


Nos templos tibetanos, e funcionando em movimento contínuo, os moinhos de orações substituem ou completam as preces dos fiéis. Como as orações impressas na roda moageira têm a mesma capacidade de chegar aos céus que as preces individuais, realiza-se o ritual e folgam os penitentes.

Lembro-me destes equipamentos de cada vez que ouço uma sessão parlamentar, nomeadamente a habitual jornada periódica de perguntas ao primeiro-ministro. Palavra por palavra, repetem-se as perguntas já mil vezes feitas e dão-se as respostas já mil vezes dadas, num ritual cíclico e infindável. Tudo se passa de modo tão igual e previsível que um cidadão minimamente atento seria capaz de relatar uma sessão de perguntas e respostas, qualquer que fosse o governo, na véspera de ela se realizar.  

Sendo as coisas como se apresentam, não se perderia nada, e traria até óbvias vantagens, substituir os deputados por um moinho tibetano, trocando na roda as preces pelas orações dos deputados. Estes deixariam de se cansar com as mesmas perguntas e os primeiros- -ministros poderiam trabalhar no que mais interessa ao país, ficando, acima de tudo, o ritual salvaguardado. E assim como, no Tibete, as versões dos moinhos variam dos grandes maquinismos dos mosteiros às pequenas maquinetas de mão, entre nós, o problema ficaria resolvido com um moinho de grandeza adequada à dimensão oratória dos nossos deputados. E estou certo de que S. Bento receberia muito bem tal equipamento, lembrado do convento que em tempos já foi.

De facto, uma simples máquina era capaz de reproduzir com rigor os temas, os tiques, o estilo, a oratória vã, o vazio de conteúdo, a insistência no acessório, os remoques pessoais, a violência verbal, até o insulto que constituem palavra corrente dos nossos políticos nas intervenções, nos discursos, nas entrevistas, nos comícios, na omnipresença nas rádios e televisões.

Toda esta situação é o óbvio resultado de, legislatura após legislatura, não ter havido uma verdadeira e efectiva remodelação da classe política. Repetindo-se as mesmíssimas personagens, as ideias cristalizam e o processo bloqueia: em idênticas circunstâncias, os aplausos da maioria passam a ser os insultos, se na oposição, e as vaias da oposição transmudam-se em aplausos, se no governo.

Urge alterar este estado de coisas que, a perdurar, ferirá de morte a ideia de democracia.

No estado actual, e dada a importância do parlamento, por si e por ser um lugar privilegiado de recrutamento de pessoal para os governos, condição necessária para tal alteração é uma reforma do sistema eleitoral para a AR que atribua aos eleitores um efectivo poder na escolha dos deputados, através do voto preferencial, ou que faculte a introdução de círculos uninominais, como forma de impor um cuidado acrescido na selecção dos melhores candidatos, ou ainda que permita a admissão ao sufrágio de cidadãos independentes com genuíno interesse no serviço público.

Lamentavelmente, não se crê que os directórios partidários o façam espontaneamente, pelo que só um movimento vigoroso de opinião pública poderá levar os partidos a moverem-se no sentido de escolherem os melhores, os mais capazes, os mais sensatos, os mais devotados para as mais responsabilizantes funções públicas, a começar pelos candidatos a eleger para o parlamento.

Temos todos o dever de participar nesse movimento. Aqui e agora, passa também por aí a democracia. Substituindo por gente viva os moinhos das palavras gravadas e sempre repetidas.

Economista e gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade


Representantes do povo ou moinhos de orações?


No Tibete, as versões dos moinhos variam dos grandes maquinismos dos mosteiros às pequenas maquinetas de mão


Nos templos tibetanos, e funcionando em movimento contínuo, os moinhos de orações substituem ou completam as preces dos fiéis. Como as orações impressas na roda moageira têm a mesma capacidade de chegar aos céus que as preces individuais, realiza-se o ritual e folgam os penitentes.

Lembro-me destes equipamentos de cada vez que ouço uma sessão parlamentar, nomeadamente a habitual jornada periódica de perguntas ao primeiro-ministro. Palavra por palavra, repetem-se as perguntas já mil vezes feitas e dão-se as respostas já mil vezes dadas, num ritual cíclico e infindável. Tudo se passa de modo tão igual e previsível que um cidadão minimamente atento seria capaz de relatar uma sessão de perguntas e respostas, qualquer que fosse o governo, na véspera de ela se realizar.  

Sendo as coisas como se apresentam, não se perderia nada, e traria até óbvias vantagens, substituir os deputados por um moinho tibetano, trocando na roda as preces pelas orações dos deputados. Estes deixariam de se cansar com as mesmas perguntas e os primeiros- -ministros poderiam trabalhar no que mais interessa ao país, ficando, acima de tudo, o ritual salvaguardado. E assim como, no Tibete, as versões dos moinhos variam dos grandes maquinismos dos mosteiros às pequenas maquinetas de mão, entre nós, o problema ficaria resolvido com um moinho de grandeza adequada à dimensão oratória dos nossos deputados. E estou certo de que S. Bento receberia muito bem tal equipamento, lembrado do convento que em tempos já foi.

De facto, uma simples máquina era capaz de reproduzir com rigor os temas, os tiques, o estilo, a oratória vã, o vazio de conteúdo, a insistência no acessório, os remoques pessoais, a violência verbal, até o insulto que constituem palavra corrente dos nossos políticos nas intervenções, nos discursos, nas entrevistas, nos comícios, na omnipresença nas rádios e televisões.

Toda esta situação é o óbvio resultado de, legislatura após legislatura, não ter havido uma verdadeira e efectiva remodelação da classe política. Repetindo-se as mesmíssimas personagens, as ideias cristalizam e o processo bloqueia: em idênticas circunstâncias, os aplausos da maioria passam a ser os insultos, se na oposição, e as vaias da oposição transmudam-se em aplausos, se no governo.

Urge alterar este estado de coisas que, a perdurar, ferirá de morte a ideia de democracia.

No estado actual, e dada a importância do parlamento, por si e por ser um lugar privilegiado de recrutamento de pessoal para os governos, condição necessária para tal alteração é uma reforma do sistema eleitoral para a AR que atribua aos eleitores um efectivo poder na escolha dos deputados, através do voto preferencial, ou que faculte a introdução de círculos uninominais, como forma de impor um cuidado acrescido na selecção dos melhores candidatos, ou ainda que permita a admissão ao sufrágio de cidadãos independentes com genuíno interesse no serviço público.

Lamentavelmente, não se crê que os directórios partidários o façam espontaneamente, pelo que só um movimento vigoroso de opinião pública poderá levar os partidos a moverem-se no sentido de escolherem os melhores, os mais capazes, os mais sensatos, os mais devotados para as mais responsabilizantes funções públicas, a começar pelos candidatos a eleger para o parlamento.

Temos todos o dever de participar nesse movimento. Aqui e agora, passa também por aí a democracia. Substituindo por gente viva os moinhos das palavras gravadas e sempre repetidas.

Economista e gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade