Cinco séculos nos separam do momento em que a pena na mão de um homem traçou as linhas de um rosto que ainda hoje nos custa olhar de frente. Talvez porque preferimos projectar as nossas próprias ânsias e ilusões, somos enganados pelas nossas esperanças, e o autor deixou claro que os líderes não podem deixar de aproveitar esta fraqueza, mascarando sempre as suas verdadeiras intenções. As próprias intenções de Nicolau Maquiavel ao escrever “O Príncipe” continuam, hoje, um mistério.
Alguns acreditam que o fez para instruir tiranos, torná-los mais hábeis e eficientes, ao passo que outros dizem que o fez precisamente para lançar luz sobre as suas artimanhas, expor a própria natureza corruptora do poder. Talvez o tenha feito simplesmente porque podia fazê--lo. É uma obra de uma discreta e genial inteligência que cumpre o desafio a que se propõe sem reservas nem qualquer hesitação: mostrar aos governantes o que têm a fazer para se impor no mundo como ele é, e não como devia ser.
Para lá dos fins e dos meios, Maquiavel insistiu que por maior que seja o azar, não é ele que nos torna impotentes
Logo nas suas premissas, este livro deixa claro que não é para todos os leitores. Funciona como a antiutopia, o que não quer dizer que não possa ser muito mais útil que os devaneios humanistas que tantas pessoas encaminham para sonhos, só para despertar mais tarde em infernos terrivelmente concretos e reais. O pensamento de Maquiavel é muitas vezes arredondado como uma tese cínica e amoral cujo corolário é a vulgarizada noção de que os fins justificam os meios. Sim, isso está lá, mas é um preceito constelado entre uma série de outros que merecem igual atenção e que testemunham a lucidez de alguém que soube interpretar os fenómenos do poder, a sua necessidade e limites. É no exercício do realismo que “O Príncipe” reconfirma na actualidade a sua relevância, pois Maquiavel não se cansa de insistir que, mesmo perante as circunstâncias mais adversas, não somos impotentes.
O tratado que Maquiavel dedicou a Lourenço de Médici, provavelmente como um meio de o convencer dos seus atributos como conselheiro em matéria política, viria a tornar-se um dos livros mais influentes e controversos da literatura ocidental. Na Amazon regista mais compras que qualquer obra de Shakespeare. Curiosamente ou não, de pouco lhe serviu a dedicatória, já que nunca mais conseguiu regressar à actividade política, primeiro com o exílio em San Casciano e, depois, em Florença, com uma vida dedicada ao estudo aprofundado dos grandes monarcas do passado, a sua companhia predilecta, que só abandonaria para morrer em 1527.
Bertrand Russell descreveu-o simplesmente como “um manual para gangsters”. Na sequência da II Guerra Mundial, houve autores que o condenaram e o agruparam com as teses defendidas pelo partido nazi. E mesmo no seu tempo, o cardeal Reginald Pole, prelado inglês, defendeu que “O Príncipe” tinha sido escrito pela própria “mão de Satanás”.
Somos tentados a pensar que o tempo é uma linha que segue num só sentido, constante. Espanta-nos por vezes a circularidade na nossa própria vida. O que é difícil perceber é que, se “O Príncipe” foi uma obra de enorme relevância no seu tempo, não só não a perdeu hoje como talvez se tenha tornado ainda mais significativa. Num tempo em que é a própria linguagem que é turvada, manipulada para veicular noções ideológicas, e fazer acreditar que não há senão um caminho, o que é exemplar na obra de Maquiavel foi a forma como despojou a sua linguagem do tom idealista e deixou de fora, como o próprio refere, “as palavras pomposas e pretensiosas”, servindo-se da história para ilustrar a sua concepção do mundo.
Como pôde um livro quase unanimemente amesquinhado exercer uma influência tão significativa e duradoura?
Se, para Maquiavel, quem quer que ignore a realidade com vista a viver de acordo com os seus ideais acabará por descobrir que foi educado no sentido de se destruir a si mesmo, a realidade é dinâmica, um jogo que favorece os espíritos cultos.
Acontece com os grandes autores e os grandes livros: ficam-nos muito mais perguntas que respostas. Assim é com “O Príncipe”. Como pôde um livro composto maioritariamente por frases curtas, directas e inegavelmente simples suscitar tantas interpretações, com frequência absolutamente contraditórias entre si? Como pôde um livro quase unanimemente amesquinhado exercer uma influência tão significativa e duradoura na história do pensamento político? Quem foi Nicolau Maquiavel? Um patriota italiano, um inimigo do Papa ou tão-só um florentino fervoroso? Qual era mesmo o seu pensamento político? Um mestre do calculismo e cinismo da governação, um arauto dos perigos e vícios do poder, um defensor de um governante absoluto ou, pior ainda, um justificador dos tiranos? O que significa este livro tão assertivo numa obra e num autor paradoxalmente tão contraditórios?
A verdade é que nunca houve outro livro como este, publicado pela primeira vez em 1532, cerca de cinco anos depois da morte do seu autor, mas que já circulava em versões privadas desde 1513, um ano após o regresso dos Médici à cidade de Florença com o apoio das forças espanholas e do Papa Júlio II, no que representou o fim do projecto político florentino ao qual Maquiavel dedicará a parte mais significativa da sua vida pública, ainda que seja incerto o real relevo do seu contributo na condução da política de Florença.
À superfície é um “espelho de príncipes”, um género literário típico da época medieval, um manual que ensina os príncipes a serem Príncipes de acordo com uma ética cristã de governação. Mas no interior de “O Príncipe” desenha-se uma revolução, escrita no idioma da sua população, e não no latim dos eruditos: a do realismo político, que eleva o calculismo e a plasticidade ao cume das virtudes dos governantes.
É um livro com duas vidas: a pública, a de uma das obras mais polémicas da história – proibida, vilipendiada, satirizada, listada no infame Index desde meados do século XVI –, a do livro que garantiu ao seu autor, entre outras coisas, a imortalidade enquanto adjectivo (maquiavélico), sinónimo de calculismo, de dissimulação, de imoralidade, de inspiração diabólica, tanta que os ingleses, ao que parece, baptizaram o mesmíssimo diabo com o seu primeiro nome, a julgar pelo Oxford English Dictionary, que avança esta teoria como uma das possíveis origens da velhinha expressão “Old Nick”. E depois vem a outra história, o segredo sempre à frente dos nossos olhos, aquela que nos diz que, desde então, os nossos príncipes puseram em prática as lições de Maquiavel, ou que, mesmo antes dos seus conselhos, já assim procediam, e que o autor pouco mais fez que realçar isso, porque a primeira e mais importante missão do poder, como Maquiavel bem reparou, tende a ser a sua preservação.
Existe, politicamente falando, um antes e um depois de Maquiavel. Sem ele, o corte profundo com a teologia política medieval não teria sido possível, como provavelmente nunca teria havido, mais ou menos um século mais tarde, o temível “Leviathan” de Thomas Hobbes. Mas a sua influência não se circunscreveu à literatura política. Sem Maquiavel, é quase certo que nunca teríamos Bolingbroke ou Ricardo III, pelo menos na forma como Shakespeare os retratou.
Durante séculos, “O Príncipe” foi lido como defendendo que a acção política pode – e, muitas vezes, deve mesmo – implicar a prática de actos inadmissíveis, imorais. Mesmo algumas das recepções mais positivas lhe destacavam esse feito, o do divórcio entre a necessidade e oportunidade política e a ética. Como destaca Isaiah Berlin, esta interpretação de Maquiavel funda-se em dois erros. Há que considerar que, se existe tal oposição dentro desta obra, certamente não é entre a política e a moral, mas sim entre a política e uma moral, a cristã. Mas, mais que isto, o que Maquiavel pretende dizer é que a política faz parte do desenvolvimento natural da humanidade e, como tal, cumpre uma função essencial e, por isso, tem uma ética própria, que não é nem estóica, nem hedonista, nem teológica: é política. Ou seja, focada nos meios de fundação e manutenção do poder, porque o serviço público deve ser imune a qualquer ética pessoal. Nas palavras do autor, “para manter a sua posição, deve adquirir o poder de não ser bom e aprender quando deve usá-lo e quando não o deve fazer”. “O príncipe prudente defende o que é bom quando pode, mas faz o mal quando é necessário e, assim, ver-se-á confrontado com a necessidade frequente de ir contra a verdade, contra a caridade, contra a humanidade e contra a religião.”
Com David Teles Pereira