O seu trisavô paterno foi primeiro-ministro da Primeira República. O avô foi um monstro do teatro. O pai foi músico; a mãe, cantora lírica; o tio é um actor de carreira invejável; o irmão é músico e cantor. A lista continuaria, com um denominador comum e constante: a árvore genealógica dos Wallenstein tem arte à cabeça. É dela que fluíram todas as ramificações de uma família com nome que salta à vista enquanto ladeia os Silvas e os Ribeiros deste país. Peso- -pluma para alguém que desde cedo se apercebeu que o das-nove-às-cinco não seria o seu destino. Catarina é produto interno em bruto de uma escola de actores que não se vê a liderar shares de horário nobre e que prefere a audiência própria de anfiteatros e salas de cinema. Foi pelo cinema que se estreou, é pelo cinema que anseia. Filme de uma vida que tem decorrido no teatro, sobretudo à boleia dos Artistas Unidos. Aos 28 anos, já fez tudo sem que isso a contente, até porque o seu talento vocal, desconhecido para alguns, ainda é capaz de vir a gerar frutos. Nada para breve – breve é esta conversa que, a avaliar pela velocidade com que Catarina despeja o que a define e atormenta, corresponde a um par de horas.
As últimas vezes que nos cruzámos foi sempre em torno de peças teatrais. Não há volta a dar, ou seja, é o teatro que espera que ocupe grande parte da sua carreira?
Não, haveria volta a dar se houvesse mais apoios ao cinema, porque efectivamente tenho uma grande saudade de fazer cinema, mas a produção tem sido muito pouca. Até a consideração pela parte do consumidor não é a melhor. Há uma data de refilices contra os subsídio-dependentes, mas tem de se perceber que é uma arte muito cara e que precisa de apoios em todo o lado do mundo. E que gera dinheiro, gera trabalho, vende-se a cultura. Tem havido pouco investimento nisso. Acho que vai haver volta a dar quando houver mais cinema.
Isso significa que pretende fazer cinema mais do que teatro?
A par e passo, vamos partilhando tempo, se der para fazer os dois. É muito diferente, não consigo dizer que gosto mais de um ou de outro. Neste momento tenho um grande afecto pelo cinema porque, para além de ter sido por onde comecei, já não faço há muito tempo. As saudades também distorcem o amor.
Mas é possível um actor dizer que a sua praia é o cinema, por exemplo, em relação a outros formatos?
Sinto-me mais confortável a fazer cinema. O facto de estar confinada a um plano, ou seja, não existe só um plano de corpo inteiro, dá-me um sossego maior do que o quadro inteiro, do espaço vazio. No palco podes fazer tudo. Essa liberdade acaba por ser um abismo e, às vezes, meter algum medo.
Isso traduz-se numa melhor performance qualitativa?
Traduz-se em segurança. Agora, não sei se sou melhor em teatro do que em cinema.
Já alguém lhe disse isso?
Não, comecei por fazer cinema e houve assim uma certa curiosidade “deixa lá ver como é que ela faz teatro”. Hoje em dia, não, nunca houve essa comparação. Suspeito que funcione melhor em imagem do que no teatro, mas espero que não seja um abismo assim tão grande.
Estudou teatro em Paris, algo de que poucos se podem vangloriar. Que importância é que isso teve na sua formação e na sua vida?
Só estive um ano em Paris e percebi claramente que é importante sair de onde se está, seja sair de uma cidade grande para uma pequena, seja o inverso, o sair do conforto, dos hábitos. Perceber que, apesar de ser uma cultura relativamente próxima, há obviamente outra relação, por exemplo, com o teatro, há outra maneira de pensar. Foi muito importante ter outras referências, outra história.
Essa forma diferente de os franceses olharem as artes marcou-a especificamente?
Sim e, para além disso, fiz o Liceu Francês, ou seja, há toda uma ligação à cultura. Cresci a ler poesia francesa e a capacidade de ler texto numa língua que não é a minha é, apesar de tudo, muito próxima de quando o faço em português. Foi uma ferramenta que me permitiu trabalhar com alguma segurança sem ser considerada “a estrangeira”.
E em relação ao método de ensino, sentiu diferenças, para alguém que estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema?
Aí sim, foi uma novidade. Cá existe um programa um pouco universitário: no primeiro ano fazes a descoberta do teatro, depois vais levar com o Gil Vicente e com o Shakespeare no segundo ano, há um programa-base com as mesmas estéticas. E lá disseram-nos para devorar textos, escolher o que queríamos fazer, falar com os nossos colegas e chegar à aula com proposta de encenação, texto sabido, proposta de guarda-roupa, e o professor trabalha a partir da tua ideia. Isso estimula logo uma independência criativa.
Tem feito, de facto, muito teatro. Já lhe passou pela cabeça encenar ou escrever uma peça?
Nem por isso. Tenho um polícia que, ao fim de três letras, está a carregar no delete. Ainda me sinto mais intérprete do que criadora. Ando com vontade de dirigir actores no sentido de ajudar no trabalho de voz e de texto. Acho que o poderia fazer bem, até porque estudei canto muitos anos e conheço bem o instrumento – a par com o dizer texto, algo de que gosto bastante. É uma ideia. Pode eventualmente surgir uma parceria com um colega, um workshop, não sei. Não sei sequer se é para já.
Ainda é cedo para criar…
Sim, tenho essa dificuldade, do espaço vazio e da panóplia de possibilidades. Não sei se é ser pouco corajosa. Não sinto que tenha um sítio para pôr o cunho, não tenho segurança para dizer “isto é a minha visão, isto é o que vos quero dizer”. Para já, faço isso por escolhas de outros, porque acabamos por ser criadores quando somos intérpretes.
Tem 28 anos e é das poucas actrizes a nível nacional que pode dizer que já fez televisão, teatro e cinema. No entanto, nunca foi o típico estereótipo da actriz associada à imagem…
Isso deve-se a alguma sorte, também. Entro no mercado através do cinema e numa altura em que ainda era estudante…
É diferente entrar no mercado por essa porta?
Acho que é. O mercado da televisão está profundamente ligado à imagem e às revistas: as revistas vendem os produtos televisivos e vice--versa. De repente, um actor já é conhecido. Um actor é aquilo que nós fazemos, é o nosso trabalho, e nesse mercado mistura-se tudo. A ficção não serve para ter as calças da marca x ou ir a certos eventos, por muito que seja simpático. Convém não esquecer que somos actores. Como estava a dizer, era estudante, ou seja, não tinha aquela ânsia de ter dinheiro ao fim do mês e de ter de aceitar tudo. Acho que foi por aí.
E agora, com 28 anos, é pessoa para perder algum tempo do seu quotidiano a pensar na sua profissão e no que tem andado a fazer?
Tenho pensado demais nisso.
O que quer dizer com isso?
Quero dizer que há uma certa inconsciência, quando se é mais novo, que é boa. Que nos dá mais coragem, em que não nos questionamos, e nos lançamos. No outro dia falava com a Maria João Luís sobre isso. Podemos ter ansiedade, insegurança, podemos duvidar de nós, querer aprender mais, podemos ter muita coisa. Mas medo… Em palco, não podemos ter medo. E eu, às vezes, tenho-me deixado cilindrar pelo medo e acho que isso é algo limitador.
Quando estudava canto e estava integrada em coros, participou em algumas peças teatrais, cantadas. Aí, esse medo não existia?
Nervos, nada. Lembro-me de aos 15 anos fazer uma peça no Teatro Aberto, com encenação do João Lourenço, em que tinha um solo, e lembro-me de sentir o coração a bater. Mas são aqueles nervos em que pomos o pé no palco e passam. Não são os nervos mentais em que uma pessoa se começa a julgar. Acho que isso veio com a responsabilidade de fazer a “Gata em Telhado de Zinco Quente”. Às tantas, achei que não estava a fazer aquilo tão bem. Isso é mais limitador que a dificuldade do papel, é a nossa cabeça a hiperventilar.
O que guarda desses anos em que estudava canto?
Não quero deixar de cantar. Nunca deixei de cantar. Agora, quando tenho mais tempo livre, espaços em que sobretudo não tenho teatro, estou no Coro do Tejo, onde fiz duas vezes o “Messias” do Händel. Vou tentando estar ligada à música. Obviamente, através do meu irmão, ela acaba por fazer parte do meu quotidiano. Vou tendo uns convites… O ano passado fiz quatro ou cinco concertos com o Rodrigo Leão. Há sempre uma vontade de ir cantando e de estar em estúdio.
Parece-lhe que as pessoas, os seus fãs, que gostam de ir vê-la ao teatro ou ao cinema, têm a noção da sua capacidade vocal?
Não ligam muito a isso. Repare, há dois anos saiu “A Gaiola Dourada”, onde entro apenas numa cena a fazer de fadista. A quantidade de vezes que ouvi alguém a perguntar-me se era mesmo eu a cantar aquele fado, se não era playback… Em quase todas as entrevistas, a conversa vai bater à música, que estudei canto, e tal. Mas nunca houve uma coisa vendida porque não são projectos meus.
Falta lançar um disco. Quando é que isso vai acontecer?
Ou quando começar a escrever canções ou… não sei. Tem a ver com alguma cobardia. Sou corajosa para dizer que sou cobarde. Sou actriz, as pessoas sabem mais ou menos o que faço. Para vir para um mercado que não é o meu, tem de ser muito bom. Senão, é só artificial. Não vou encomendar um projecto a uma editora só para sair cá para fora com uma coisa vendável.
Em televisão participou em três projectos ligados a uma época específica da nossa história: “Conta--me como Foi”, “E Depois do Adeus” e “A Vida Secreta de Salazar”. Tem algum fascínio por esta temática?
É assumido, tenho um fascínio enorme por essa época. Há-de haver uma coisa genética qualquer. O meu trisavô paterno foi primeiro-ministro da Primeira República.
O Afonso Costa.
Exacto, e, portanto, há toda uma linhagem de pensadores, vanguardistas. A minha avó foi deputada logo a seguir ao 25 de Abril. Há toda uma coisa do não esquecer de onde se vem. Não está tudo feito e sinto que esta geração se encosta à liberdade que agora temos porque os políticos são todos animais e não vale a pena levantar o rabo para ir votar.
Isso faz-lhe confusão?
Claro. Ainda há 40 anos havia 40% de iliteracia. Venho de uma família com cursos superiores e afins, mas tenho a noção de que esse não é o Portugal real. Há poucos anos lutava-se por coisas básicas. Recebi da minha família esse não conformismo. Esses três projectos foram algo obra do acaso, mas serviram-me de lição, tive de estudar bastante. Nós não sabemos a nossa história e depois somos uns peixinhos de aquário e só sabemos queixar-nos do que não está certo hoje.
Já alguma vez alguém a acusou de fazer uso do seu nome para singrar?
Devem ter acusado, mas não me disseram. Sinto que tento movimentar-me nos vários meios com muito respeito pelo sítio onde chego, independentemente daquilo que represento – aquilo que represento é o que estou a fazer no momento. Pode haver colegas que me olham com aquele olhar de quem diz que para mim foi mais fácil… Se calhar, foi, mas a verdade é que continuo a fazer castings. Será assim a vida toda, com espaço para ouvir “não”, como ainda há pouco tempo me aconteceu. O que acho é que as pessoas ficam atentas, do género “olha mais uma actriz Wallenstein, deixa lá ver”. Isso causa mais atenção, sem dúvida.
Portanto, esse apelido é mais um orgulho do que um peso?
Para mim, é um orgulho. Não sinto tanto esse peso porque não é o meu pai nem a minha mãe. O meu avô, conheci-o muito mal, o meu tio é meu tio, ele é homem, eu sou mulher, não há aquela coisa da competição directa da mãe com a filha ou assim. Portanto, sim, é um orgulho.
Não tem feito muita televisão. É porque não surgiu nada que lhe tenha agradado ou simplesmente porque tem andando a fazer outras coisas?
Não, tenho andado a fazer outras coisas. E, por exemplo, em relação às novelas tenho algumas dúvidas da qualidade do meu trabalho àquele ritmo, durante nove ou dez meses. Fico ansiosa por ter pressa, assusta-me a nível de cansaço. Aguento dois ou três meses a um ritmo alucinante e depois caio para o lado. Mas agora acho que vou fazer televisão, uma coisa mais curta. Estou à espera de uma confirmação.
Alguma vez pensou ser algo que não artista?
Não. Tenho um grande interesse pela psicologia, mas pode ser algum defeito de profissão. Consciente ou inconscientemente, passamos a vida a reproduzir padrões que identificamos – porque é que esta pessoa reage assim, como é que ela anda –, temos de inventar a história toda que há por detrás da personagem. Depois dou por mim a analisar os comportamentos das pessoas. É uma coisa que me interessa: histórias de pessoas sobre pessoas.