Foi uma estreia molhada, entre a bênção e o sacrilégio menor. A inesperada chuva estival estragou a festa ao ar livre da primeira edição do Jazz em Agosto, mas a música seguiu o seu caudal no Grande Auditório da Gulbenkian, até então pouco familiarizado com o género. De resto, tudo soava a 1984. Os festivais, animados pela prata da casa, contavam-se pelos dedos de uma mão, a audição e o ensino do jazz improvisavam-se no Hot Clube, e os concertos avulsos dependiam da boa vontade de um calendário irregular. “Comprar discos já não era a aventura desesperada do passado, embora ainda se sentissem as restrições impostas nos anos 80 pelo FMI… Mas ler os livros de referência era mais complicado”, recordam António Curvelo e Manuel Jorge Veloso na nota de apresentação do reencontro do Sexteto de Jazz de Lisboa (SJL).
Coube à dupla responsável pelo Ciclo Histórias de Jazz em Portugal (uma co-produção do Hot Clube de Portugal e do Centro Cultural Vila Flor, que se estendeu por 16 sessões, entre Janeiro de 2014 e Maio de 2015 ), desafiar o histórico conjunto a regressar aos palcos. Esse mesmo, o da foto a preto a branco, a mesma que convoca o espanto de Mário Laginha trinta anos depois. “É de susto! Por um lado, parece que passou tão pouco tempo. A velocidade com que o tempo passa é ampliada quando se vê a fotografia . Vejo que passaram muitos anos. Mas não lido mal com isso”.
Teve vida breve essa formação inaugural, que subiu ao palco no dia da primeira apresentação ao vivo. A Tomás Pimentel, Carlos Martins, Edgar Caramelo e Mário Laginha juntaram-se David Gausden e Carlos Vieira. Para o lugar dos dois últimos, que partiriam pouco depois, entrariam os irmãos Barreiros, Pedro e Mário. “O grupo inicial começou por ser só com músicos de Lisboa. Depois é que entraram os manos Barreiros, que são do Porto, mas com o acordo deles mantivemos o nome”, explica Laginha. Mais tarde, um dos fundadores, Carlos Martins, cederia também o seu lugar a Jorge Reis, fixando-se assim a formação do SJL. Tem poucos meses a morte do saxofonista, o único ausente desta reunião, com a missão a ser confiada em palco, amanhã na Culturgest, e dia 23 no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, ao jovem Ricardo Toscano. “Quando o Jorge Reis morreu pusemos em causa a junção do sexteto, mas depois achámos que, até para homenageá-lo, fazia sentido. Convidámos um jovem saxofonista muito bom, que até teve algumas aulas com o Jorge”.
O pianista associa-se ainda ao trompete de Tomás, ao saxofone de Edgar, ao contrabaixo de Pedro e à bateria de Mário. O desfecho ao vivo é uma incógnita, mas para os músicos, que à época dos primeiros encontros estavam todos na casa dos vinte anos, a idade faz bem a quase tudo, “menos às selfies”. “Há um lado de experiência que se vai acumulando. É um lugar comum mas faz-nos olhar para as coisas de outra forma, levando-nos a usar o nosso conhecimento de maneira diferente. Isso na música até me dá gozo. Vamos tocar muitos temas da época, mas de maneira diferente. A forma como se improvisa e se interpreta muda”.
Em 1990, os elementos do Sexteto, que pôs os originais à frente dos standards, seguiam diferentes carreiras. Um historial que necessariamente enforma o momento presente, sem que as memórias das primeiras águas, como aquelas de Agosto, condicionem a prestação deste domingo e do próximo sábado. “Acho que é possível uma frescura, e um olhar com desprendimento. Desprendimento em relação à ideia de que passara anos. Começamos a tocar e não pode ser um assunto que esteja em cima da mesa. Fazemos música com o que somos agora, e o que somos agora é a soma do que fomos todos.
raridade em vinil Em 1987, o grupo gravava o seu primeiro e único disco, aclamado pela crítica. Chegados a 2015, ir “Ao Encontro” deste vinil é uma operação não só difícil como praticamente impossível, de tal forma que só há pouco tempo Mário Laginha conseguiu voltar a ter em sua posse um dos originais. “Foi editado só em vinil, e depois, quando passou tudo para o compact disc, ninguém achou que devia por aquilo em CD. Portanto nem CD há. Mal ou bem, é um disco de coleccionador. Tinha-o dado. Aqui há uns tempos o Tomás, que tinha um a mais, deu-me um”.
Em três décadas, mais que tempo para a transição do analógico para o digital, “mudou mesmo muita coisa”, garante o pianista, que antes do Sexteto integrava o quinteto da Maria João, enquanto os irmãos Barreiros faziam parte do quarteto de António Pinho Vargas. “Pensou-se numa formação mais alargada, com três sopros e uma secção rítmica. Éramos muito poucos, seria o nosso grupo e pouco mais. Entretanto apareceu uma geração de músicos que estudou nos EUA, Holanda, Alemanha, e vieram com um know how muito grande de como ensinar”. Foram criadas escolas, na capital e mais além, organizou-se o método de ensino, multiplicou-se o número de praticantes. “Um dos exemplos é que antigamente quando aparecia um bom músico toda a gente sabia imediatamente. Agora é possível ir ao Hot, ver alguém tocar incrivelmente bem, e não fazer ideia quem seja. É um óptimo sinal. Faz-nos sentir um país menos pequeno. Tínhamos muitos vícios. Quem tinha olho era rei. Isso eleva a bitola e cria uma rede de cumplicidade tanto no ensino como na audição, que se vai alargando. Só falta criar espaço para os jovens músicos tocarem”.
Amanhã, 21h30, Culturgest, Lisboa (15€, sujeito a desconto). Dia 23, Guimarães, 22h00 (10€, sujeito a desconto)