O jornal


Nós somos palavra. Somos o que conversamos com o jornal que lemos. E quando o jornal cumpre o ofício, crescemos como homens de palavra


Só ontem percebi que o jornal i cumpria hoje o seu sexto aniversário.

Tendo já mais ou menos burilada a crónica anunciada, mas ainda com as palavras à espera de ordem de soltura, comecei a ponderar se não deveria – fica sempre bem – dizer algo sobre o evento, mas o quê?

Passar a esponja nos directores? Declarar o meu arrebatamento por pertencer a um tão selecto grupo de companheiros cronistas? Elogiar uma redacção e toda uma equipa de designers, editores, fotógrafos que criam a cada número, e com os meios disponíveis, um dos melhores produtos da imprensa escrita portuguesa?

Agradecer à Maria de Lurdes Abreu, que pacientemente atende os meus 30 telefonemas de vírgulas, pontos e cortes?

Estava neste trilema, com as palavras até aí em pousio a ameaçar volutear para se luzirem endoidecidas, desenhadas letra a letra em papel banco, e eu a ver se lhes dava a volta, a seduzi-las para me oferecerem uma estória parida a gosto e a tempo da edição, quando tudo se começou a juntar.

Estava claro, era sobre elas, as maganas das palavras que fazia sentido escrever, especialmente em dia de festa de jornal que é a oficina da palavra escrita.

Não há palavra escrita que, em seu juízo, não queira ser jornal. São donas do dia, frescas, renascem vividas, são cor, denúncia e lembrança. São palavras da rua, abertas ao olhar de quem quer ver e a passar de mão em mão. Democratas.

Simples, a ler a fotografia que nos entra pelos olhos dentro e liberta as palavras escondidas na película editada, porque a imagem também é palavra.

Cumpridoras, a explicar o sucedido, brigonas, provocadoras, a incendiar ideias e a moldar opinião. Informadas, vaidosas por chegarem primeiro. Sofisticadas, a correrem mundo em redes de humanos.

No periódico, aos gritos chamam-lhes manchetes mas, se for um suspiro, é uma breve. As palavras em colunas organizadas, escritas e perfiladas, umas baixas e outras altas, mais uns bonecos e umas tantas fotos, e eu sei lá mais o quê, todas juntas, concubinas, gravadas uma a uma a dar sentido e direcção ao almaço que só é jornal quando as bebermos pela manhã a cheirar o dia.

Nós somos palavra. Somos o que conversamos com o jornal que lemos. E quando o jornal cumpre o ofício, crescemos como homens de palavra.

Amo as palavras, mordo-as. Persigo-as e lanço-as como pedras, e assim liberto–as, não são minhas. Uma única palavra pode mudar uma ideia inteira construída de palavras unidas e, se uma cai, já é outra ideia que se levanta.

São muito novas e muito velhas, têm peso e são leves, têm sombra, iluminam a noite e compõem o horror. Os que têm medo das palavras, ameaçam jornalistas ou ensaiam propostas para as domesticar, encontram sempre as palavras de resistência.

E quando pensam que nos levaram tudo, afinal, deixaram-nos tudo. Deixaram o mais precioso… deixaram-nos as palavras.

Há palavras que magoam mais que facas, outras que são salvadoras. Algumas são palavras distraídas, outras são para a vida e não nos largam mais. Existem palavras que envergonham o mundo e outras que tornam o homem invencível.

O jornal é o nosso tapete mágico, onde nos transportamos e deixamos levar. Um jornal é feito de pessoas que se constroem e desconstroem em palavras num movimento perpétuo, dialéctico. É um filho todos os dias concebido a correr logo de seguida, o malandrim.

Existem algumas de que gosto muito: fi.lho, pa.la.vra, sei.os, a.mi.go, re.vo.lu.ção, le.al.da.de, ca.fé, vi.a.gem, ve.lho.te, co.ra.gem, jor.nal. E outras de que não gosto nada: po.rra.da, ca.bo.ti.no, per.nil, Ex.ce.len.tí.ssi.mo, cu.

Cresci e aprendi a gostar de ler jornais com o meu pai, que trabalhou no “Diário Popular” e n’“O Século”, com o Rogério Rodrigues, jornalista grande, um artesão da palavra escrita que me ensinou a respirar e a olhar as palavras no seu discreto movimento, a trocarem-se entre si em disfarces de pontuação, as grandes gozonas. E com o Luís Osório, a quem devo o desafio da palavra dita e agora escrita.
Neste sexto aniversário do jornal i, foi do que me lembrei: agradecer a esta extraordinária equipa, operários da palavra, de um jornal em que tenho enorme satisfação em participar. Se melhor não faço é porque me faltam palavras. As tipas não são fáceis e outras há que são madrastas.

Ler este jornal, estar informado por ele, reflectir na pluralidade das suas opiniões é perceber a intenção do i de não se deixar intimidar. O i quer-se insubmisso e teso, na primeira linha de defesa da democracia.

As palavras podem ter o som da democracia e no jornal i todas as palavras escritas são sementes de liberdade. Essa missão é insubstituível, não para que todos sejam eruditos, mas para que ninguém seja escravo.
 
Consultor de comunicação
Escreve às quintas-feiras


O jornal


Nós somos palavra. Somos o que conversamos com o jornal que lemos. E quando o jornal cumpre o ofício, crescemos como homens de palavra


Só ontem percebi que o jornal i cumpria hoje o seu sexto aniversário.

Tendo já mais ou menos burilada a crónica anunciada, mas ainda com as palavras à espera de ordem de soltura, comecei a ponderar se não deveria – fica sempre bem – dizer algo sobre o evento, mas o quê?

Passar a esponja nos directores? Declarar o meu arrebatamento por pertencer a um tão selecto grupo de companheiros cronistas? Elogiar uma redacção e toda uma equipa de designers, editores, fotógrafos que criam a cada número, e com os meios disponíveis, um dos melhores produtos da imprensa escrita portuguesa?

Agradecer à Maria de Lurdes Abreu, que pacientemente atende os meus 30 telefonemas de vírgulas, pontos e cortes?

Estava neste trilema, com as palavras até aí em pousio a ameaçar volutear para se luzirem endoidecidas, desenhadas letra a letra em papel banco, e eu a ver se lhes dava a volta, a seduzi-las para me oferecerem uma estória parida a gosto e a tempo da edição, quando tudo se começou a juntar.

Estava claro, era sobre elas, as maganas das palavras que fazia sentido escrever, especialmente em dia de festa de jornal que é a oficina da palavra escrita.

Não há palavra escrita que, em seu juízo, não queira ser jornal. São donas do dia, frescas, renascem vividas, são cor, denúncia e lembrança. São palavras da rua, abertas ao olhar de quem quer ver e a passar de mão em mão. Democratas.

Simples, a ler a fotografia que nos entra pelos olhos dentro e liberta as palavras escondidas na película editada, porque a imagem também é palavra.

Cumpridoras, a explicar o sucedido, brigonas, provocadoras, a incendiar ideias e a moldar opinião. Informadas, vaidosas por chegarem primeiro. Sofisticadas, a correrem mundo em redes de humanos.

No periódico, aos gritos chamam-lhes manchetes mas, se for um suspiro, é uma breve. As palavras em colunas organizadas, escritas e perfiladas, umas baixas e outras altas, mais uns bonecos e umas tantas fotos, e eu sei lá mais o quê, todas juntas, concubinas, gravadas uma a uma a dar sentido e direcção ao almaço que só é jornal quando as bebermos pela manhã a cheirar o dia.

Nós somos palavra. Somos o que conversamos com o jornal que lemos. E quando o jornal cumpre o ofício, crescemos como homens de palavra.

Amo as palavras, mordo-as. Persigo-as e lanço-as como pedras, e assim liberto–as, não são minhas. Uma única palavra pode mudar uma ideia inteira construída de palavras unidas e, se uma cai, já é outra ideia que se levanta.

São muito novas e muito velhas, têm peso e são leves, têm sombra, iluminam a noite e compõem o horror. Os que têm medo das palavras, ameaçam jornalistas ou ensaiam propostas para as domesticar, encontram sempre as palavras de resistência.

E quando pensam que nos levaram tudo, afinal, deixaram-nos tudo. Deixaram o mais precioso… deixaram-nos as palavras.

Há palavras que magoam mais que facas, outras que são salvadoras. Algumas são palavras distraídas, outras são para a vida e não nos largam mais. Existem palavras que envergonham o mundo e outras que tornam o homem invencível.

O jornal é o nosso tapete mágico, onde nos transportamos e deixamos levar. Um jornal é feito de pessoas que se constroem e desconstroem em palavras num movimento perpétuo, dialéctico. É um filho todos os dias concebido a correr logo de seguida, o malandrim.

Existem algumas de que gosto muito: fi.lho, pa.la.vra, sei.os, a.mi.go, re.vo.lu.ção, le.al.da.de, ca.fé, vi.a.gem, ve.lho.te, co.ra.gem, jor.nal. E outras de que não gosto nada: po.rra.da, ca.bo.ti.no, per.nil, Ex.ce.len.tí.ssi.mo, cu.

Cresci e aprendi a gostar de ler jornais com o meu pai, que trabalhou no “Diário Popular” e n’“O Século”, com o Rogério Rodrigues, jornalista grande, um artesão da palavra escrita que me ensinou a respirar e a olhar as palavras no seu discreto movimento, a trocarem-se entre si em disfarces de pontuação, as grandes gozonas. E com o Luís Osório, a quem devo o desafio da palavra dita e agora escrita.
Neste sexto aniversário do jornal i, foi do que me lembrei: agradecer a esta extraordinária equipa, operários da palavra, de um jornal em que tenho enorme satisfação em participar. Se melhor não faço é porque me faltam palavras. As tipas não são fáceis e outras há que são madrastas.

Ler este jornal, estar informado por ele, reflectir na pluralidade das suas opiniões é perceber a intenção do i de não se deixar intimidar. O i quer-se insubmisso e teso, na primeira linha de defesa da democracia.

As palavras podem ter o som da democracia e no jornal i todas as palavras escritas são sementes de liberdade. Essa missão é insubstituível, não para que todos sejam eruditos, mas para que ninguém seja escravo.
 
Consultor de comunicação
Escreve às quintas-feiras