É evidente em qualquer idade: nenhum homem chega tão longe sozinho. Ninguém está preparado para uma viagem tão longa. Quando o avô paterno morreu, perguntou para onde tinha ido. Seria mais simples explicar os contornos de um programa espacial, mas os pais, como tantos outros, ensaiaram a resposta terra à terra para aterrar as dúvidas à primeira: foi para o céu. O mistério adensou-se. A criança insistiu. “Ele era astronauta? Como chegou ao céu sem foguetão?” Aguentem-se, quando ele descola é tramado.
Duarte Ramos nasceu 19 dias depois deste jornal, a 26 de Maio de 2009. Em Setembro, estreia-se no ensino primário, novo combustível para uma idade inquieta e curiosa. Há-de dominar as palavras, fazer todas as perguntas e procurar todas as respostas com a ajuda da escrita e da leitura. Continuará a sorrir muito como hoje, primeiro nervoso com a hipótese da foto, depois descontraído como um profissional. “Estou à espera de aprender a ler em inglês, espanhol, e conseguir falar outras línguas.” Por agora, no Externato Cesário Verde, em Lisboa, “ando a aprender os números e estou quase a fazer os planetas”. O verbo não traz engano ou imprecisão como um adulto de mundo meio vazio poderia pensar. Fazê-los é descrevê-los, e descrever é dar vida. Cada miúdo deve escolher um e explicá-lo à turma. Escolheu Saturno, decisão nada casual, ainda que o assunto exija alguma reflexão. “Gosto daqueles anéis à volta. Mas ainda não pensei bem sobre o assunto.”
Há uma fronteira que separa os maiores dos mais pequenos, ou os mais pequenos dos menos pequenos. Modas como a da Violetta ficaram pelo caminho, fazer cara feita à sopa está mais que ultrapassado, e toda a gente sabe ou deve saber as origens dos pequenos bonecos que nos mostra no quarto, “a imitar as coisas da Disney”. “Não”, sentencia incrédulo quando lhe perguntamos se também passam na televisão, elegante ao guardar para si aquele que poderia ter sido o implacável desfecho – “Como é que tu não sabes isto?”
Alcançar a meia dúzia de anos é poder dizer que crescer é bom, sem pressa de lá chegar. Afinal, ser grande, sem complicações à mistura, é sobretudo uma questão de tamanho, e nesse capítulo ele leva vantagem. “Já sou o mais alto da minha sala.” O gosto pela música vai ficando, desmedido e revelado quando pega na pequena guitarra e começa a dedilhar. Pausa. Acompanhamos o desempenho por uns minutos. À falta da justa euforia na plateia, ou porque o assombro é notório, não desiste da actuação perante o júri. “Espera, sei tocar muito melhor o órgão. Se tivesse música estava com o meu amigo João.” E muda de instrumento.
João é um dos amigos. É escusado entrar em escalas de valores, decidir entre os mais próximos e os mais afastados. Discriminar é redutor e dá trabalho, e aos quase seis temos direito a escolher tudo e a escolher nada, a decidir que todos são diferentes e todos são iguais. E, já agora, a acreditar que vai ser sempre assim. “Já não me lembro dos nomes dos melhores, melhores, amigos. Amigos tenho muitos… Mafalda, Tiago, André, Steffany, Mafalda… ai, esta já disse”
Pelo ecrã da sala de casa desfilam os inevitáveis desenhos animados, programas de dança como o The Next Step, seguido por um bailarino de mão-cheia, que ensaia no tapete uns passos dos movimentos preferidos: “breakdance”. O zapping permite ainda passagem por conteúdos sérios que desafiariam a paciência e o interesse do adulto mais compenetrado. “Gosto de uma coisa sobre dinossauros. Porque cada dia nessa série dá um dinossauro que ninguém conhece. Parece misterioso, e eu gosto de mistérios.”
Na idade em que tudo é virgem e à mercê da criação, como Saturno e os seus anéis, não espere que este fã dos animais enumere candidatos óbvios, banais residentes do Jardim Zoológico ou a espécie mais exótica do Badoca Park. “O animal de que gosto mais ainda não foi descoberto.” E é isto, senhores. Com esta nos calamos, suspeitando que o animal que ainda não foi descoberto existe, claro que existe, ele sabe quem sim. “Gosto de um animal que ainda ninguém viu. Imagino que anda no chão, e que para caçar voa. O seu corpo tem energia com o sangue, aparece com um fato de leão e finge que os pássaros não estão a ver. E depois voa.” Há bichos mais acessíveis, domesticáveis, que não precisam de conseguir voar ou caçar para cair em graça, e ainda assim justificam as preocupações de qualquer dono minimamente atento. “Gostava de ter um cão, pequeno, que não sinta muito a minha falta quando eu não estou em casa.”
Gostar e não gostar são dois pesos da mesma balança. O paladar é humilde, os atritos também; os ódios são tão
inofensivos que podem ser estimados sem receios. “Gosto de comer ovo estrelado. Não gosto de cenoura, aquela grossa.”
– inteira?
– não, grossa!
– aos bocados?
– pois, aos bocados não gosto, só daquela fininha
– ralada?
– isso.
Está esclarecida a inimizade mais forte, e vinculado ao papel o diálogo mais vitaminado dos últimos tempos.
Duarte divide-se entre o futebol – “A minha posição é guarda-redes ou avançado”, a apanhada no recreio, o jogo dos beijinhos – “Quem apanhar tem que beijar o outro. Eu não fui apanhado muitas vezes” – as brincadeiras nos parques ao fim de semana; a destreza no desafio de carros no iPad – “ok, não me lembro do nome do jogo” -; o boneco panda que faz companhia nas viagens de carro; as incertezas naturais sobre um futuro que pode esperar – “quero ser muitas coisas. Ainda não escolhi. Queria ser um cantor, dançarino, polícia. Polícia porque eu quero, tipo, mandar em todos e isso, e tomar conta.”
Sobre o papel do pai e da mãe não espere comentários ao estilo de teste americano. “Vejo-os como os mais responsáveis desta casa” [esclarecimento: os pais não estavam por perto, não subornámos ninguém, e sim, ele é capaz de ser mais sensato que muito homem feito]. “O meu pai ensinou-me um pouco de espanhol. A minha mãe ensinou-me desde os 3 anos… não, desde os 2, a portar-me bem.”
E depois falamos do medo, como se ainda nos pudéssemos espantar, e conseguimos mesmo. “Só a dormir, quando fico sozinho às escuras. Às vezes também acordo, levanto-me, e quase que chego aos meus pais. Vou até aquela porta, vejo que está tudo bem, e deito-me outra vez.” Tudo tranquilo. Duarte, explicas a quem já esqueceu o que é o melhor desta idade? “Nesta idade é bom libertar o corpo. É brincar com os outros para aproveitar o momento.”