Josh Karp. “Em algum lado, Orson Welles está a adorar que ainda trabalhem para ele”

Josh Karp. “Em algum lado, Orson Welles está a adorar que ainda trabalhem para ele”


Nasceu exactamente há cem anos e morreu há 30.Ainda assim, o seu mais ambicioso filme continua por terminar. 


Karp é o autor do livro que explica porquê.

Aos 25 era o maior e isso, por norma, traz problemas para o resto da vida. Depois da invasão alienígena que encenou na rádio com “A Guerra dos Mundos” em 1938; depois de “Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés” (1941), para muitos o melhor filme de sempre, não seria fácil continuar.

Ainda assim, a obra que deixou explica-nos que exigência, critério e criatividade nunca lhe faltaram. Em 1970 dá início à rodagem de “The OtherSide of the Wind” e nunca o terminou.

No ano passado, o “New York Times” avançava que era neste 6 de Maio de 2015 que o filme seria mostrado ao mundo. Nada feito. Josh Karp, jornalista e escritor, decidiu descobrir porquê e contar tudo em livro, “Orson Welles’s Last Movie”. Esta conversa é só o início da explicação.

A história nunca acabada de “The Other Side of the Wind” é algo que sempre o fascinou ou uma descoberta recente?
Desde sempre, não diria… Já tinha ouvido falar do filme, mas quase tudo através de pequenas histórias estranhas sobre a rodagem, coisas sobretudo de entretenimento… 

E porque decidiu fazer este livro?
Quando se escreve sobre algo como Hollywood, as oportunidades de escrever sobre pessoas que são maiores que a vida, como Orson Welles, são praticamente nulas, porque há centenas de livros sobre estas pessoas. Claro que gosto do George Clooney e do Johnny Depp, mas não estou interessado em escrever sobre eles. Interessam-me estes de outros tempos que continuam a ser figuras imperiais. E quando se escreve um livro, passamos anos com o tema, com as pessoas sobre quem escrevemos, temos de gostar delas, estar interessados, temos de estar motivados.

Sobretudo quando se trata de uma obra nunca acabada de um dos maiores realizadores de sempre. Isso deve ajudar, não?
O tema do filme e a forma como correspondia à vida de Welles nesse mesmo tempo, quando o fez, isso sim, é fascinante. Era tudo muito próximo, como ele escolheu pessoas da sua própria vida, quase a interpretarem-se a elas próprias e à relação que mantinham com Orson. Mas tudo feito com pequenos twists, os suficientes para que não se pudesse chamar ao filme autobiografia. Arte que imita a vida, claro, mas a determinada altura também já era a vida que imitava a arte, tudo de uma forma bastante estranha. Sempre vi isto como o auto-retrato de um homem que está a olhar para um auto-retrato e assim sucessivamente.

Qual é, na verdade, a história de “The Other Side of the Wind”?
Ah, isso é interessante. Durante muito tempo, Orson Welles foi considerado um tipo brilhante mas com quem ninguém conseguia trabalhar, além de que gastava muito dinheiro. Em 1958 fez “A Sede do Mal” e acaba num conflito com a Universal sobre a finalização do filme. Chega mesmo a escrever uma nota de 58 páginas a explicar os seus motivos e a sua posição. Depois disso corta relações com Hollywood e vai para a Europa. Continua a fazer filmes, mas com os mesmos problemas financeiros e de relacionamento. Há muito caos, mas também há bons filmes. Em 1970, Hollywood está diferente e daí vem a mudança. 

 

Josh Karp, o autor de "Orson Welle's Last Movie"

Uma nova geração…
Sim. Os estúdios estão a morrer e há uma nova vaga de realizadores. Era a idade de “Easy Rider” e “O Touro Enraivecido”. Os artistas estão no comando e Welles vê que é uma boa altura para regressar. Durante anos tinha trabalhado num argumento, vagamente baseado em Hemingway, sobre um escritor que perdeu a criatividade, que é secretamente homossexual e apaixonado por um toureiro. Isto muda ao longo dos tempos e transforma-se num filme sobre um realizador macho alfa que é o protagonista dos próprios filmes. Este realizador volta a Hollywood em 1970. É um cineasta lendário que viveu na Europa 12 anos e está a fazer o seu filme de regresso com muita dificuldade. O título do filme é “The Other Side of The Wind”. Semelhanças com a realidade? Todas. Mas há mais. Este protagonista é seguido por toda a gente, elogiado por todos. E o curioso é que foi mais ou menos em 1970 que Welles começou a ser adorado desta maneira. Começa uma nova análise da sua obra, da sua influência como autor. Basta-nos saber isto para perceber que se tratava conscientemente de uma grande obra, de uma última obra.

O que fez com que o filme nunca tivesse sido terminado?
Muitas coisas diferentes. Uma das grandes perguntas é se ele alguma vez quis terminar o filme. Acho que sim, mas acabou por se colocar no meio de um filme que dificilmente seria terminado e com muita influência nesse resultado. Não me parece que o tenha feito de propósito, mas talvez tivesse sempre alguma consciência de que isso era uma possibilidade. Criou uma situação financeira impossível. Sempre que alguém lhe dava uma solução, ele não a aceitava. Parte do dinheiro para o filme vinha do cunhado do xá do Irão e havia muitas críticas sobre isso. Mas, ao que parece, era um tipo fantástico que acreditava e adorava o trabalho de Welles. Foi sempre generoso e não pedia nada de volta, um produtor muito paciente mas que, por fim, entrou em conflito com Welles.

Porquê?
Welles tinha um ponto fraco: não se dar bem com figuras de poder, muito menos se tivessem dinheiro. Essa seria sempre uma situação complicada. E, depois, os problemas que acabaram por surgir no Irão e que complicaram tudo. O dinheiro deixou de entrar e tornou-se impossível continuar o filme. Pensando bem, Orson Welles dava um perfeito artista do Renascimento. Do que precisava era de um patrono paciente, com dinheiro para gastar e que o deixasse fazer as coisas como ele queria. Sempre que alguém o abordava para falar de controlo criativo ou de finanças, as coisas acabavam mal.

Alguma vez vamos ver o filme?
Gosto de pensar que o filme está meio amaldiçoado, porque o problema não é apenas a rodagem, o trabalho de Orson Welles. É que há gente a tentar acabar o filme desde que o homem morreu. O director de fotografia que o acompanhou durante muitos anos foi abordado num festival de cinema, já depois de Welles ter morrido, e perguntaram-lhe se ainda trabalhava para ele. A resposta foi “nunca parei”. Em algum lado, Welles está a adorar que falem dele e continuem a trabalhar para ele 30 anos depois.

Cedo começaram a dizer que seria um filme maior e melhor que “Citizen Kane”. Era essa a preocupação dele?
É verdade que, em tempos, Orson Welles chegou a dizer que viveu a vida ao contrário, que começou no topo e acabou a fazer filmes sem fim. Ele acreditava mesmo que a sorte tinha alguma influência e que ele teve a melhor e a pior das sortes, tudo na mesma vida. Mesmo o que ele fez antes de “Citizen Kane”, antes de fazer 22 anos, ninguém consegue fazer isso numa vida inteira. Qualquer pessoa venderia a alma para conseguir fazer o que ele fez. “A Guerra dos Mundos”? Criar a companhia Mercury Theatre? Fazer o melhor filme de sempre à primeira tentativa? Ele fez isto tudo até aos 25. É difícil superar isso.

E foi reconhecido em vida por tudo isso? Era visto como o vemos agora?
Depende do mundo de que falamos. No mundo da crítica? Com toda a certeza. Sempre condenou a ideia da análise académica sobre o trabalho artístico. Ele dizia que eram apenas filmes, mas eram aclamados por todos os jornais e revistas. “O Quarto Mandamento” [1942], “A Dama de Xangai” [1947], “As Badaladas da Meia- -Noite” [1965], “A Sede do Mal” [1958], foram todos elogiados. Mas nunca foi reconhecido de forma popular, até porque não era isso que procurava. Mas, de qualquer maneira, o mundo não é necessariamente justo a julgar a arte. E há muitos exemplos disso. O mais caricato é o de “Moby Dick”, de Herman Melville, que durante anos esteve à venda na secção de “Baleias” das livrarias. Mas com Welles só podia ser assim. Esteve sempre desligado do mainstream e de Hollywood, não podia esperar outra coisa. Mas, de alguma maneira, esteve também sempre próximo da fama, nem sempre por causa do cinema.

Então porquê?
Por causa da sua persona, da sua figura. Ele era o bon vivant, o tipo dos charutos e do copo que se deixou engordar sem se preocupar. E que depois fez anúncios – ficou conhecido por isso. Muitos o criticaram porque se vendeu, de alguma maneira, ao decidir dar voz a coisas comerciais. Mas foi uma decisão consciente. Ele quis fazer os filmes à sua maneira e pagou a vida que levava com esse outro lado mais financeiro. Nunca dormia. Nunca. Estava sempre a trabalhar em dezenas de coisas ao mesmo tempo. O público via-o como a estrela de talk shows; Hollywood via-o como o tipo impossível; a crítica e os apaixonados por cinema viam-no como o maior realizador de sempre. E assim continuam a fazer.

 

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