Ruth Rendell. A baronesa do suspense

Ruth Rendell. A baronesa do suspense


A criadora do inspector-chefe Wexford vendeu mais de 60 milhões de livros em todo o mundo. Morreu sábado, aos 85 anos


A passagem por um jornal do Essex durou tanto como um ataque cardíaco.  Quando mandaram a jovem repórter cobrir um jantar num clube desportivo, Ruth escreveu a história sem sair de casa. A ausência no evento até poderia ter passado despercebida, mas é difícil ignorar um cadáver na sala. Nem a fértil imaginação daquela que viria a ser uma das rainhas do suspense podia prever o momento alto do encontro: um dos oradores morreu durante o discurso. Ironia das ironias, depois deste episódio, dedicou-se a matar personagens.

De nove em nove meses, a média da autora, trouxe ao mundo um novo título. Foram mais de 60 livros, ao longo de 50 anos de escrita, uma carreira de sucesso que se estendeu ao ecrã da televisão. Coube ao actor George Baker vestir o fato de trabalho do inspector-chefe Reginald Wexford, a estrela da sua galeria de figuras, criação que surgiria pela primeira vez num romance de 1964. O nome escolhido para o protagonista, o seu alter ego, foi um parto em território irlandês, onde visitaria duas terras: Wexford e Waterford. “Não sei porquê. Acho que gostei da letra ‘x’.” Estava justificado o baptismo.

O thriller psicológico, a consciência social, os apontamentos de terror, são as marcas distintivas da britânica Ruth Rendell, formalmente conhecida como baronesa Rendell of Babergh, hospitalizada em Londres desde Janeiro, e cuja morte, este sábado, aos 85 anos, foi anunciada pela Penguin Random House.

“Era uma observadora elegante da sociedade. Muitos dos seus enredos de crime sublinhavam as causas que lhe eram mais caras”, distinguiu a editora, justificando-se a evocação de outro nome maior da literatura daquele país, P. D. James, a autora que morreu o ano passado, aos 94 anos, cujo talento, à semelhança do de Rendell, se conjugava com a capacidade de transcender as fronteiras do género policial, presente em livros como “Um Bando de Corvos”, “A Árvore das Mãos”, “O Beijo da Serpente”, ou “Uns Mentem, Outros Morrem”.

Não é por acaso que a produção da trabalhista, conhecida pelo seu vínculo ao Labour desde 1997, foi traduzida em mais de 20 idiomas, gerando vendas mundo fora que atingem a marca dos 60 milhões de exemplares. Escapando ao tradicional puzzle simplista – quem matou quem? –, Rendell convocou temas menos usuais para os seus mistérios. Assuntos como o racismo no meio rural britânico, a violência doméstica, os casamentos combinados, os dilemas da imigração ou as preocupações ambientais, intrometeram-se nas tramas, perante o consenso dos leitores, que acalmaram os receios inaugurais da escritora.

De resto, não terá feito mais que trabalhar sobre uma infinidade de matéria-prima à vista de todas as almas. “Não penso que o mundo seja um lugar particularmente agradável”, confessou certa vez à Associated Press, admitindo que a vida real consegue ser mais frutífera que a mais refinada das ficções – basta recordar esse funesto jantar no Essex.

Em 1986, com “A Dark-Adapted Eye”, passado na Segunda Guerra, começou a assinar com o pseudónimo de Barbara Vine. Em 2013, em entrevista ao “Guardian”, rejeitou o plano de se reformar dos livros. “Não conseguiria. Vou escrever até morrer.” Em 2014 chegava mais uma obra. Em Outubro, a título póstumo, será publicado “Dark Corners”.