Enganador, ou pelo menos incompleto. A história da opressão é um vasto enredo, que está longe de se esgotar nas esgotantes décadas de 70 e 80. É esta a nossa escala temporal, por cenários como Libéria, Rodésia, Tanzânia ou Moçambique, palcos da luta contra a presença dos colonos, dos senhores cuja vida se assemelha a um “épico”, alheios à evidência que se atravessa no caminho: “O homem colonizado expressará a sua violência.” “Om våld”, em sueco, “Concerning Violence”, em inglês, ou ainda “A Respeito da Violência”, três formas iguais de falar de “nove cenas de autodefesa anti-imperialista”, a estrutura do documentário do realizador Göran Olsson, que se estreou esta semana nas salas nacionais.
Uma das avaliações do documentário descrevia-o como um outsider a contar a história dos movimentos de libertação de África. Até que ponto se sente um forasteiro a olhar para este contexto?
Parto de um livro em particular, “Os Condenados da Terra” (1962), de Frantz Fanon [o escritor e revolucionário nascido na Martinica que morreu pouco tempo depois de completar esta obra], que se dirige aos europeus. Não é propriamente dirigido a quem vive oprimido, mas a nós, para que possamos compreender as dinâmicas por trás desta lógica de opressão e violência. Dentro dessa ideia, não me considero um outsider. Penso que esse texto foi escrito para pessoas como eu.
Como continuamos a lidar com o assunto?
É um tema muito transversal, de Portugal à Suécia, numa espécie de contágio. Para mim não se trata tanto de questionar o passado como de questionar a actualidade. Isto é sobre hoje. Trata-se de uma alteração do poder colonialista. Passámos das colónias para o poder imperialista das empresas. Fazem hoje um trabalho mais eficiente que qualquer estado. O roubo, o materialismo, são questões actuais, com outra cara. Para mim, esta história de opressão está muito longe de ter acabado; ela continua.
É apenas uma escala da história?
Sim, penso que este texto está muito longe de ser apenas sobre esse período em particular; vai muito para além disso. Na minha opinião centra-se numa violência estrutural, e quando falamos de violência de um ponto de vista estrutural podemos estar a falar de domínios como a violência doméstica, até. Este contexto aplica-se a diferentes situações, como por exemplo ao conflito entre Israel e a Palestina.
O que o surpreendeu mais ao rever estas imagens?
O meu maior espanto derivou da leitura do texto, muito antes das imagens. A minha ideia inicial era usar imagens contemporâneas para fazer o trabalho.
Porque não o fez?
Pensei nisso, mas depois tive receio da reacção do público. Não queria que fosse uma visão demasiado específica sobre os nossos dias. Queria abrir uma discussão a um nível muito mais abrangente.
Ponderou outras hipóteses de abordagem, de tratamento do tema?
Pensei fazer uma animação ilustrada, mas depois encontrei este material de arquivo e achei que era o ideal.
Teve acesso aos arquivos de televisão e cinema suecos, o suporte do documentário.
Sim, todo o material no filme é sueco, produto do trabalho de documentaristas suecos. Não é propriamente material novo. Claro que há ali muita coisa que não é nova, mas havia frescura. Foi isso que me atraiu. Ao mesmo tempo corresponde ao objectivo eu que tinha. Surgem ali casos únicos, casos em que vemos as pessoas a falar, a manifestar a sua opinião, temos cor, temos som. Tínhamos boa qualidade em mãos.
O título é “A Respeito da Violência”. Esta é de facto a palavra-chave de toda a história?
Sim, claro. Interessa-me a dinâmica por detrás da violência. A chave é mesmo essa. E, lá está, se pegasse em imagens de Gaza ou algo do género, acabaria por ter um impacto meio… blá-blá-blá. Não. Queria uma discussão muito mais abrangente, e penso que o filme está a conseguir isso.
Mas não consegue deixar-nos particularmente optimistas quanto ao futuro.
Pois não, a questão é mesmo essa. Entristece-me pensar que as pessoas não souberam ouvir estes homens há 40 anos. Se a opressão se prolongar, é evidente que a violência vai brotar inevitavelmente.
Como descobriu a obra de Fanon?
Li-o pela primeira vez quando era bastante jovem. Antes de começar este documentário, o editor na Suécia deu-me o livro de presente. Comecei a lê-lo num café e voltei a pensar que aquilo era brilhante. Nessa altura pensei também que tínhamos de fazer um filme sobre aquele texto. Tive várias hipóteses de trabalhos diferentes, nos Estados Unidos, por exemplo, mas para mim este era o texto. Na altura saltei de um café para outro e terminei a leitura. Foi assim.
Um livro que inspira um filme, e agora um filme que inspira um livro?
Sim, agora estamos a fazer um livro sobre o filme. É uma versão escrita do documentário. Chegará aos EUA no Outono, mas na Europa ainda não faço ideia.
Como surge a cantora Lauryn Hill na narração?
Temos vários amigos em comum. Escrevi-lhe uma carta e ela respondeu. Foi incrível porque estava presa na altura [por evasão fiscal] e nesse momento estava a ler Fanon na sua cela. Gostou muito da ideia de se poder juntar ao projecto. Chegámos a pensar fazer uma música para o documentário, mas acabámos por não ter tempo para isso. Mas sim, ela é uma grande fã de Fanon.