No famoso “Manifesto Anti-Dantas”, Almada fala na “pátria onde Camões morreu de fome e todos enchem a barriga de Camões”. A ira dos génios tem destas coisas, muito frequentes na vida cultural, quando pela radical negação de uns quantos personagens, há gerações que sucedem, e deles só sabem que foram humilhados por quem estava à sua frente no tempo.
De Júlio Dantas, para além de uma quase saborosa “Ceia dos Cardeais”, ou de uma “Severa” de fazer chorar as pedras da calçada, pouco ou nada mais sabemos a não ser das ceroulas, na missa inspirada que o mestre Almada lhe gritou em convicta ira revolucionária.
Isto também vem a propósito de Saramago, por mais estranho que pareça. Recordo a exaltante leitura do “Memorial do Convento”, irrepetível obra, em que eram marcantes o apuro historiográfico, a língua, o vocabulário, o jargão, porque estávamos de facto ali, a respirar o século do magnânimo João V. Bastantes anos depois, recebo uma provocatória oferta de culto, um livro do Júlio Dantas – “O Amor em Portugal no Século XVIII”, na edição de 1916, com excelentes ilustrações de Alberto de Sousa. Foi um regalo. Nada comparável com o “Memorial…” na dimensão, no fôlego imenso, mas na devida proporção lá reencontrei esse ar que já tinha respirado, e que nos é dado com refinado humor e muita espessura linguística.
Não sei se Saramago o terá lido, provavelmente sim, nem sei se alguma vez o terá referido em qualquer situação. A coincidência é que foi feliz e sábia no ensinamento. Não foi por os tempos andarem tristonhos que resolvi reabilitar o Dantas. Foi só pelo exótico prazer da leitura. Pim!
Historiador. Escreve ao sábado