O amor, as entranhas e as máquinas


O coração não é vermelho e curvilíneo como os emojis que enviamos aos nossos namorados.


Não queria saber, mas soube há pouco tempo em que consiste uma ablação. Um cateter é inserido através dos vasos sanguíneos até chegar ao coração e queimar uns quantos circuitos que não andam a funcionar bem e provocam arritmias. Basicamente, é como se o coração fosse a arranjar.

O coração não é vermelho e curvilíneo como os emojis que enviamos aos nossos namorados. Encontramo-lo na canja, na categoria dos miúdos – um eufemismo duvidoso de palavras gastronomicamente menos simpáticas, como “vísceras” ou “entranhas”. Também há bifes de coração. O coração é uma maquineta viscosa que nos permite viver. Não há grande volta a dar.

Os robôs não têm coração mas têm outra maquineta do género. No filme “Ex-Machina”, nas salas de cinema, o realizador e argumentista Alex Garland mostra-nos uma inteligência artificial que almeja desesperadamente aquilo que ainda nos separa das máquinas: a consciência. Ficção científica, sim. Mas uma ablação também me parece ficção científica.

Estou realmente em crer que um dia os robôs venham a ser capazes de amar como nós. Ou de fingir que amam como nós. Porque o que mais há é pessoas a programar namorados à sua medida julgando dominar um código que não funciona e pessoas que acham que são programáveis mas avariam constantemente.

Não amamos com o coração – amamos em função da nossa programação, do processamento dos dados que fazem de nós aquilo que somos. Não me sinto menos romântica por admiti-lo. Mesmo que as feromonas cheirem hoje a cremes do Boticário, a compatibilidade entre duas pessoas continua a ser uma coisa mágica. 

Aliás: nada me comove mais na ficção científica que a atribuição de sentimentos a uma máquina. E não me esquecerei também do que senti quando vi pela primeira vez os robôs dos Kraftwerk a aparecer em palco. O meu coração bateu mais forte, creio que tenha sido algum fenómeno magnético. 

Esta história não é nova. Lembrei-me do computadorzeco de “Electric Dreams”, dos replicants do “Blade Runner” e do sistema operativo de “Her”, entre muitas outras manifestações de amor enferrujável. E é uma história que pode ser contada para sempre enquanto vivermos na iminência de os seres humanos se tornarem cada vez mais máquinas e as máquinas cada vez mais humanas. Depois disso, quando já não conseguirmos distinguir, vai deixar de haver assunto. Passa só a haver romances do Nicholas Sparks com histórias de amor foleiras entre personagens que fazem literalmente faísca.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado

O amor, as entranhas e as máquinas


O coração não é vermelho e curvilíneo como os emojis que enviamos aos nossos namorados.


Não queria saber, mas soube há pouco tempo em que consiste uma ablação. Um cateter é inserido através dos vasos sanguíneos até chegar ao coração e queimar uns quantos circuitos que não andam a funcionar bem e provocam arritmias. Basicamente, é como se o coração fosse a arranjar.

O coração não é vermelho e curvilíneo como os emojis que enviamos aos nossos namorados. Encontramo-lo na canja, na categoria dos miúdos – um eufemismo duvidoso de palavras gastronomicamente menos simpáticas, como “vísceras” ou “entranhas”. Também há bifes de coração. O coração é uma maquineta viscosa que nos permite viver. Não há grande volta a dar.

Os robôs não têm coração mas têm outra maquineta do género. No filme “Ex-Machina”, nas salas de cinema, o realizador e argumentista Alex Garland mostra-nos uma inteligência artificial que almeja desesperadamente aquilo que ainda nos separa das máquinas: a consciência. Ficção científica, sim. Mas uma ablação também me parece ficção científica.

Estou realmente em crer que um dia os robôs venham a ser capazes de amar como nós. Ou de fingir que amam como nós. Porque o que mais há é pessoas a programar namorados à sua medida julgando dominar um código que não funciona e pessoas que acham que são programáveis mas avariam constantemente.

Não amamos com o coração – amamos em função da nossa programação, do processamento dos dados que fazem de nós aquilo que somos. Não me sinto menos romântica por admiti-lo. Mesmo que as feromonas cheirem hoje a cremes do Boticário, a compatibilidade entre duas pessoas continua a ser uma coisa mágica. 

Aliás: nada me comove mais na ficção científica que a atribuição de sentimentos a uma máquina. E não me esquecerei também do que senti quando vi pela primeira vez os robôs dos Kraftwerk a aparecer em palco. O meu coração bateu mais forte, creio que tenha sido algum fenómeno magnético. 

Esta história não é nova. Lembrei-me do computadorzeco de “Electric Dreams”, dos replicants do “Blade Runner” e do sistema operativo de “Her”, entre muitas outras manifestações de amor enferrujável. E é uma história que pode ser contada para sempre enquanto vivermos na iminência de os seres humanos se tornarem cada vez mais máquinas e as máquinas cada vez mais humanas. Depois disso, quando já não conseguirmos distinguir, vai deixar de haver assunto. Passa só a haver romances do Nicholas Sparks com histórias de amor foleiras entre personagens que fazem literalmente faísca.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado