Faz amanhã 70 anos que Hitler se suicidou. Com ele morreu uma ideia de mal que, durante grande parte do nosso tempo, foi reduzida à perigosa dimensão do que não nos pertence, do que não é humano, de um projecto político e de um ditador que não eram propriamente parecidos connosco mas uma emanação do Diabo, de um juízo final sem anjos ou Deus.
Na última década outros contributos, cinematográficos ou literários/históricos, permitiram-nos mergulhar mais fundo na personalidade de Hitler. Ver os filmes de Michael Haneke ou Oliver Hirschbigel, ou ler a biografia de Ian Kershaw, é perceber que o monstruoso Führer era muito mais diabólico na sua faceta humana (logo reconhecível) que na visão maniqueísta em que simplesmente não o conseguimos explicar enquanto homem.
Hiperbolizar um problema, torná--lo exterior a nós, alivia-nos mas traz-nos problemas que agudizam a relação com a história – terrível a forma como repetimos erros do passado por não termos deles verdadeiro conhecimento, por os termos sublimado. O tempo faz sempre o que é natural fazer, gerações substituem gerações, mudam-se vontades e até a maneira de desejar, de ter esperança ou pavor. O que se festejará amanhã é a vitória dos Aliados contra um projecto humano totalitário. Hitler era um homem como nós e isso não o tornou menos assustador, tornou-o ainda mais tenebroso. E é um aviso a respeito do futuro e de nós, do que somos capazes.
Pensei três vezes antes de fazer o paralelismo. Há sempre quem distorça as palavras e as torne perversas; acontece com as palavras e com tudo o resto, lá está. Penso na declaração de Jerónimo de Sousa, que, como muitos antes dele, afirmou que a direita, nomeadamente Passos Coelho e Paulo Portas, não se pode apropriar do 25 de Abril pois representa os que estiveram “contra a Revolução dos capitães e as suas realizações”. Na cabeça dos comunistas mais ortodoxos, Passos não pode usar um cravo na lapela nem utilizar a data para, hipocritamente, anunciar ao país políticas que atentam contra os ideais do que foi hipótese em 1974.
Um erro de avaliação dos comunistas. Porque a grande força histórica do PCP deveria estar precisamente no que se sacrificaram para que o país pudesse ser livre e uma democracia onde todos, por diferentes que fossem ou sejam, possam caber e ser respeitados pelo que dizem ou defendem. Sabemos que os comunistas não desejavam uma democracia representativa (não o desejam, na sua essência), mas ao assumirem-no tão asperamente põem-se numa posição que os acantona num passado que poucos portugueses entendem, acantona-os numa posição de resistência e a num maniqueísmo simplista que divide os bons e os maus.
A maioria da população não tem memória do 25 de Abril, eu não a tenho. O mundo mudou e a liberdade, esta liberdade, pertence a todos, é de todos. Os cravos deixaram de ser um exclusivo para ser um património. E essa força é dos comunistas. Se mudassem o discurso, se conseguissem adaptar-se a este tempo e abandonassem uma espécie de clandestinidade nunca anunciada, ganhariam o apoio de muitos que se afastam por medo de tantas certezas.