Marta Crawford. O homem fica mais com a mulher. A mulher com o amante

Marta Crawford. O homem fica mais com a mulher. A mulher com o amante


Marta Crawford percebeu muito cedo que tinha uma vocação natural para acompanhar pessoas com problemas de sexualidade, pela empatia e pela naturalidade com que trata destas questões. Não tem tabus, não julga, mas continua a não conseguir desligar das consultas em que presencia violência psicológica. E reconhece que às vezes há milagres nos casais que…


Marta Crawford percebeu muito cedo que tinha uma vocação natural para acompanhar pessoas com problemas de sexualidade, pela empatia e pela naturalidade com que trata destas questões. Não tem tabus, não julga, mas continua a não conseguir desligar das consultas em que presencia violência psicológica. E reconhece que às vezes há milagres nos casais que fazem terapia, apesar de tudo apontar em contrário.

Como começou a sua vida profissional?

A acompanhar transexuais na consulta de sexologia no Hospital Júlio de Matos, aliás a minha monografia final de curso foi sobre a transexualidade. Existe uma fase inicial de diagnóstico para avaliar correctamente cada situação. São situações muito difíceis para quem as vive, e não compreende o que se está a passar consigo. Recentemente li no jornal i “A história de uma rapariga que expulsou o rapaz que vivia dentro dela”, que conta na primeira pessoa e de uma forma muito clara o que é ser transexual. A maior parte dos transexuais vive a sua história com imenso sofrimento.  A mudança é muito complexa, porque é preciso fazer um  cuidadoso diagnóstico diferencial, antes de iniciar os tratamentos mais definitivos, como os  hormonais ou a cirurgia de reatribuição sexual. Têm a prova real de vida durante um período específico, em que começam a viver como homem ou mulher, de acordo com o novo género. Trata-se de um processo que é sempre acompanhado por médicos de diversas valências e psicólogos. Mas já não acompanho transexuais desde que saí do hospital Júlio de Matos.

Que tipo de pessoas a procuram hoje?

Sou terapeuta sexual e familiar. Os casais ou me procuram por causa da sua vida sexual ou pela sua conjugalidade, devido a problemas relacionados com questões de poder no casal, gestão da vida familiar, divisão das tarefas domésticas. Esses são normalmente os grandes temas que fazem com que discutam e não se entendam. Por vezes chegam aqui a dizer que a vida sexual é óptima e o resto é que está num caos.

E é verdade?

Raramente. Em geral está tudo um caos. As pessoas é que têm uma percepção diferente. E mesmo casais que dizem que se dão lindamente e que o problema sexual é que os traz aqui, ao fim de duas ou três sessões estão a fazer terapia conjugal porque as questões eram de outra natureza.

Como é que se reensina duas pessoas a terem sexo?

O tipo de intervenção depende do problema. Uma das questões principais que levam um casal a pedir ajuda é ter deixado de haver desejo por parte de um deles. Mas cada caso é um caso. Chamo os dois e tento perceber o ponto de vista de cada um, o que sentem relativamente à situação. Muitas vezes quando aqui chegam pensam que vou prescrever sexo, do género: agora vão para casa e vão fazer todas as vezes que eu disser e fica tudo bem. Mas não é assim. Normalmente começo por proibir as relações sexuais, quaisquer que sejam. Estabelecemos um protocolo, de seis a sete sessões espaçadas de 15 em 15 dias, e peço aos dois que estejam juntos com alguma regularidade, estabelecendo o prazo com ambos, para trabalharem aquilo que é o princípio de uma relação. O casal precisa de se redescobrir e isso só acontece se houver uma série de restrições. Uma delas é estarem proibidos de avançar para o acto sexual e não poderem tocar nem nas mamas nem nos genitais um do outro. É um trabalho muito sensorial que tem como objectivo reaproximar o casal. Porque uma das primeiras coisas que acontece nessas alturas é haver afastamento íntimo, de pele. Para que resulte, no início utilizo muito a metáfora do bem-estar, como num SPA, e levo as pessoas a criarem a ideia de que são bons momentos de relaxamento. Que não é preciso haver vontade sexual, mas sim disponibilidade de estarem um com o outro e redescobrirem-se.

Tem noção da taxa de sucesso das suas terapias?

Costumo dizer que o sucesso depende do casal. Não estamos a prescrever nenhuma medicação nem nenhuma fisioterapia, logo o resultado tem muito a ver com a vontade dos intervenientes. Mas tenho tido óptimos resultados.

Costuma mudar de estratégia ao longo das intervenções?

Por vezes sim, outras voltamos atrás, outras ainda interrompo a terapia sexual e avanço para uma intervenção conjugal. E às vezes até para uma consulta individual porque percebo que existe uma situação que não nos deixa avançar. E aí muitas vezes descubro que um dos elementos está interessado noutra pessoa. Nem sempre um casal vem à consulta pelas melhores razões. Vem porque se quer mesmo separar, porque quer provar ao outro que já não tem nada a ver com ele ou por questões legais. Mas a maior parte dos que me procuram são bastantes sinceros e acreditam na relação. E se acreditam, eu também.

As terapias sexuais devem ser feitas logo que deixa de haver desejo sexual?

As pessoas só procuram ajuda quando sentem que querem mesmo. Umas vêm ao fim de três meses, outras no início da relação, quando um dos dois percebe que essa parte não funciona. E há casais em que só um dos elementos se predispõe a vir ter comigo. Aí explico que é muito pouco provável que funcione sem o envolvimento dos dois. E depois há pessoa que vêm individualmente, mas mais por questões que têm a ver com a sua própria sexualidade ou auto-estima.

Atende mais casais ou pessoas individuais?

Mais casais. O vaginismo, que é uma disfunção sexual em que a mulher tem medo de ser penetrada, é muito frequente. As dificuldades sexuais são variadas, como a disfunção eréctil, falta de desejo, ejaculação precoce, anorgasmia, etc…

Acontece-lhe chegarem aqui pessoas que sempre fizeram sexo sem qualquer criatividade?

É mais comum do que se possa imaginar. Vejo muitos casais que na iminência do divórcio vêm pedir ajuda. E relatam que o sexo foi sempre miserável, nunca tiveram prazer. É triste mas acontece. Isso tem a ver com as oportunidades e com a coragem que as pessoas muitas vezes não têm para lutar pelo direito ao prazer. E também devido à incompetência masculina e feminina. Se calhar até mais masculina, porque muitas vezes os homens avançam para cima das parceiras e nem sabem que elas têm um clitóris, que é o único pedaço no corpo que tem como única função dar prazer. Penetram a mulher sem que ela esteja minimamente excitada e lubrificada, caem em cima dela, fazem uma série de movimentos de vai e vem, terminam, e viram-se para o lado. Isto é mau sexo? É. Existem muitos homens assim? Existem. Mas felizmente também há os outros: os habilidosos.  Sexo não é penetração nem coito, é muito mais do que isso. E é preciso verbalizar-se a intimidade, dizer-se o que se quer e o que não se quer. É uma aprendizagem que as pessoas deviam fazer desde pequeninas, homens e mulheres, Mas não somos formatados para falar sobre estes assuntos. Contamos anedotas porcas, mas temos imensas limitações quando de sexo.

As gerações mais novas falam mais da intimidade?

Muito mais e aguentam menos tempo sem se sentirem bem. Têm consciência de que têm mais direitos e não ficam caladas se as coisas correm mal. Mas não quer dizer que tenham menos tabus.

É preciso haver afecto no sexo?

Pode haver sexo sem afecto. Por exemplo, há casais que dizem que se amam muito e em que o sexo não é grande coisa. Mas eu continuo a achar que sexo com amor ou com paixão é muito mais interessante que destituído dele.

A internet construiu um novo tipo de relações…

A net aproxima pessoas de todo o mundo de uma forma muito mais fácil. Até para pessoas inibidas é mais fácil escrever do que falar. E mais facilmente através desse meio as conversas evoluem para o sexo. E também se namora à moda antiga, com grande poesia. Hoje muita gente trabalha e depois vai para casa e não sabe como há-de fazer para encontrar novos parceiros. Por exemplo, há mulheres que na consulta dizem não ter tempo para conhecer um parceiro mas que através da net conseguem encontrar alguém. E nem todos vão para o online pela mesma razão. Uns vão claramente à procura de sexo, outros de alguém para se relacionarem na vida real. Mas o tipo de comunicação e o tipo de experiência do mundo virtual é muito diferente da realidade. O grande desafio é transpor para o dia-a-dia relações que começaram à distância. Chegam-me aqui muitos casais que se conheceram dessa forma, faziam muita marmelada através da internet, mas quando começaram a viver não foi assim tão bom.

Aparecem aqui pessoas que vivem em poliamor?

Ainda não se fala muito abertamente disso em Portugal. Num dos programas que fiz para a SIC Mulher, no “Sem Tabus”, uma das raparigas tinha um parceiro que convivia com ela e com outra e as duas sabiam da situação, havendo uma alegre convivência entre os três. No início não foi muito fácil, mas depois houve uma adaptação de todas as partes. Depende do quanto se acredita em estar em várias situações em simultâneo. Não é fácil por causa dos sentimentos, fomos formatados para sermos exclusivos.

Há mais mulheres ou homens infiéis?

Houve uma altura em que os homens eram mais infiéis. Agora é ela por ela. As mulheres assumem que quando as coisas não estão bem têm o direito de procurar a felicidade noutro lugar. E até são mais cuidadosas, escondem melhor. Muitas vezes as coisas até ficam mais calmas em casa. Até que se se descobre. Aí, alguns dos parceiros enganados conseguem reconhecer a sua quota-parte de responsabilidade e na terapia tenta-se reencontrar o equilíbrio. Mas não é fácil. Depois há outra situação, em que um deles diz: “Como é que me conseguiste trair se eu até te dava tudo?” Mesmo assim, hoje os homens perdoam mais a traição da mulher do que há uns anos. Mas para que a terapia resulte é preciso que haja uma grande mudança de mentalidade dos dois. A crise financeira também contribuiu para que haja menos separações e por isso pede-se mais ajuda. E às vezes há milagres.

A raiva e a violência desaparecem e os casais conseguem encontrar um ponto de equilíbrio que nunca tinham tido até então. Haver um mediador ajuda muito.

É mais difícil a um homem ou a uma mulher ficarem numa relação em que houve uma traição?

O homem normalmente fica mais com a mulher legítima e deixa a amante, a mulher vai mais com o amante e deixa o marido. As mulheres nesse campo são mais afirmativas, mais corajosas. Os homens ficam na dúvida e confrontados com uma decisão, escolhem a família. Eu vejo que as pessoas conseguem aguentar uma situação de infelicidade durante muito tempo porque acham que não há mais nada para além disso. Umas vezes é por causa dos filhos, outras pela família, outras ainda pelo dinheiro ou pela posição. As razões são muitas e todas válidas, mas não se é feliz. Por exemplo, as tais paixões em que o amante considera ter encontrado a mulher da sua vida e depois continua numa vida infeliz porque não tem coragem de escolher a pessoa que amam. Muitas vezes acreditam que a amante é que tem garra e por isso vai aguentar-se e a legítima vai ficar infeliz e deprimida. E não querem ser os causadores de uma depressão da parceira, que nem sempre é tão frágil como dá a entender. Há muitos homens a escolher a infelicidade.

 

O swing entrou em força em Portugal….

Quando vêm ao consultório é porque a experiência não foi boa. É preciso perceber que para aderir ao swing os dois têm de querer. Às vezes vêm aqui no início, antes de começarem, para o terapeuta validar a situação e ver se o mais resistente muda de ideias. Outras relatam que já iniciaram o swing e não está a resultar. Mas também há casos de muitos anos e um dia um dos dois manifesta que foi induzido pelo outro, que ia sempre alcoolizado ou dopado, e que a partir do momento que tomou consciência do que se estava a passar ficou  desestruturado. Há também um novo fenómeno, que é o dos casais pensarem que têm de passar por todas essas experiências para terem melhor sexo ou melhor qualidade na relação. É muito comum um casal que não se dá bem na cama achar que se comprar um vibrador ou umas bolas chinesas vai ser fantástico. Mas tudo o que é inovador em termos sexuais só funciona quando as duas pessoas querem estar uma com a outra. É preciso que umas palmadas ou um ménage à trois sejam consensuais. A questão é que muitas vezes há um que diz que sim só porque não quer perder o outro. Quando isso acontece pode haver ruptura. Por exemplo, tive um caso de um homem que gostava de se vestir de mulher mas não o admitiu no início da relação. Só ao fim de um tempo assumiu perante a mulher, que era lindíssima e começou a pensar: “Como é que eu estou com este homem, que afinal é uma mulher, e que se aprimora muito mais e é muito mais espectacular do que eu?” São situações complexas, onde entramos na dialéctica dos afectos, do medo de perder… Nesse caso ou as pessoas conseguem adaptar-se à nova realidade e conviver com ela de forma harmoniosa ou entram em sofrimento e a relação termina.

 Chegam-lhe casos de violência doméstica?

Tenho algumas situações em que me é dito que já houve agressão. Mas os casos mais comuns são de violência psicológica, que é preciso trabalhar e desmontar. Quando numa relação um dos dois exibe claramente traços de malvadez e chantagem emocional, o terapeuta tem de intervir de forma a chamar a atenção e entrar no jogo para o desequilibrar. Mas muitas vezes a vítima protege o  outro. Por exemplo: numa consulta em que ela tem vaginismo e eu peço que não avancem para o sexo,  na consulta seguinte ela diz que não foi capaz de cumprir o combinado por vontade própria. Quando os confronto, percebo que ela cedeu porque ele sugeriu e ela teve receio de dizer que não. São situações muito complicadas, porque há sempre a ameaça de os dois abandonarem a terapia quando o manipulador se sente desmascarado. Nessas alturas fico bastante irritada internamente.

As terapias sexuais provocam-lhe stresse?

Em situações de manipulação e violência, como histórias de mulheres que foram violadas dentro da família ou por amigos, fico mal. Este tipo de intervenção passa por um grande trabalho de aceitação interno por parte de quem é vítima de abuso para conseguir retirar o melhor do pior. E elas muitas vezes não querem contar aos parceiros, não querem ser consideradas umas coitadinhas, e eles fantasiam sobre essas coisas ocultas.

Viu as “50 Sombras de Grey”?

Nem vi o filme nem li o livro. A história não é muito diferente da da Branca de Neve e dos sete anões ou outras do Walt Disney, em que há um príncipe e uma gata borralheira. Existem muitas práticas de sadomasoquismo bem mais pesadas que as descritas nesse livro. Acompanhei um casal muito jovem em que ela parecia um anjo e recordo-me que ele queria que ela lhe infligisse dor com sapatos altos e velas. No início da relação ela até achou divertido, mas depois fartou-se. E é nessas alturas que se procura ajuda. Toda a terapia foi no sentido de encontrar o patamar de equilíbrio entre os dois. Às vezes estas práticas são possíveis mas outras descambam porque a capacidade de aceitação é ultrapassada. Em última instância tem de haver sempre um patamar aceitável para os dois.

Nestes anos todos mudou a sua mentalidade?

Fui mudando. Quando comecei apercebi-me de que conseguia ser empática perante as maiores bizarrias e as maiores dificuldades e falar com as pessoas. Não sou de julgar, mas as situações de violência continuam a ser as mais incomodas para mim, não consigo fazer o clique quando acabam. Fico irritada e apetecia-me ir ter com o agressor, responder-lhe e proteger a parte mais frágil. Mas mesmo em situações de violência ou em que já não há respeito nenhum, de repente conseguimos dar a volta e as pessoas reaprendem a olhar uma para a outra de uma forma diferente. São os pequenos milagres terapêuticos que acontecem e dão ainda mais motivação para continuar. J