A 6 de Maio de 2014, num momento em que o presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN) já estava a ser investigado por suspeitas de corrupção e tráfico de influências no processo Vistos Gold, o instituto elaborou e publicou um Código de Ética e de Boa Conduta que deveria ser seguido por todos os seus funcionários. O manual de 30 páginas começa desde logo por frisar que “a actuação dos trabalhadores do IRN (…) deve ser honesta, independente, isenta e não atender a interesses pessoais”. Os trabalhadores do IRN deveriam ainda evitar situações susceptíveis de originar “conflitos de interesse” e combater “activamente” todas as formas de corrupção, “activa ou passiva”. Cerca de seis meses depois, o então presidente do IRN, António Figueiredo, era um dos 11 detidos daquela que ficou conhecida como Operação Labirinto. Suspeito de ser o cabecilha da rede de corrupção montada em torno da atribuição de autorizações de residência para investimento (os chamados vistos dourados), ainda se encontra em prisão preventiva.
Além do código de conduta, os responsáveis do IRN elaboraram um Plano de Prevenção da Corrupção e Infracções Conexas. Apesar de não estar disponível online, ao contrário do que está previsto, certo é que este também terá sido violado pelo responsável máximo daquele instituto público.
Vê o que digo, não o que faço E este nem é o único caso em que os manuais de boas práticas ou regras anticorrupção não terão sido seguidos por dirigentes de topo. Em Fevereiro de 2014, a Secretaria-Geral do Ministério da Justiça publicou um Relatório de Monitorização do Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção e Infracções Conexas. Tem 24 páginas e começa por dizer que a corrupção “é um forte obstáculo ao normal funcionamento das instituições, sendo no caso particular da Administração Pública um entrave a um correcto relacionamento com o cidadão, pondo em causa a salvaguarda do interesse colectivo e dos bens públicos”. Em Novembro, também Maria Antónia Anes, que exercia à data o cargo de secretária-geral da Justiça, foi detida no âmbito da investigação aos vistos gold.
Fevereiro foi também o mês em que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) publicou um Plano de Prevenção do Risco de Corrupção. A mensagem introdutória, que foca a necessidade de “criar instrumentos eficazes de prevenção” num tempo “em que escasseiam os recursos públicos e a contenção orçamental é a regra”, vem assinada por Manuel Jarmela Palos. O então director do SEF é outro dos arguidos dos vistos gold – o Ministério Público suspeita que respondeu a pedidos do então ministro Miguel Macedo para agilizar processos, a troco de se manter no cargo.
No caso do código de conduta do IRN, quase todas as regras colidem com as suspeitas que são imputadas a António Figueiredo pelo Ministério Público, tendo por base um ano de vigilâncias e escutas telefónicas ao antigo dirigente. No desempenho das suas funções, os trabalhadores do IRN não devem perder de vista que se encontram “ao serviço exclusivo da comunidade, dos cidadãos e das empresas”. Devem, isso sim, “tratar de forma justa e imparcial todos os cidadãos, actuando segundo princípios de neutralidade e de equidade” e “sempre de forma independente e isenta em relação a interesses particulares”.
O favorecimento de determinados cidadãos em relação a outros é, obviamente, proibido pelo manual. Ainda assim, o Ministério Público encontrou uma série de indícios que mostram que Figueiredo terá praticado vários crimes de abuso de poder: é suspeito de ter favorecido amigos e familiares, o futebolista David Luiz e até Miguel Relvas, ex-ministro-adjunto e dos Assuntos Parlamentares, providenciando em apenas duas horas uma certidão de registo criminal para que a mulher deste, Marta Sousa, conseguisse um visto para viajar para Angola. Ao fazê-lo usando os meios do IRN (terão sido os próprios motoristas do instituto a ir entregar o documento original a Relvas), Figueiredo terá violado mais uma regra: aquela que dita que “os recursos físicos, técnicos e tecnológicos afectos à actividade do IRN” se destinam “a ser utilizados, em exclusivo, no cumprimento da missão e objectivos do Instituto”. Não terá sido apenas um caso isolado: segundo o Ministério Público, o então presidente do IRN servir-se-ia do carro do instituto para ir a jantares na Embaixada na China, com o objectivo de angariar investidores para os terrenos da Feira Popular, ou para visitas a imóveis com cidadãos de nacionalidade chinesa.
Os trabalhadores do IRN estão ainda impedidos de “solicitar, receber ou aceitar, para si ou para terceiro, ofertas, favores ou outros benefícios que excedam um valor meramente simbólico e que, de algum modo, estejam relacionados com as suas funções ou actividades”. Figueiredo é suspeito de receber uma percentagem do negócio de compra de imóveis a troco de rapidez na atribuição de vistos dourados. O desrespeito das normas de conduta, diz o manual, seria suficiente para incorrer em responsabilidade disciplinar “ou outra”, consoante a gravidade do caso.
Já na Secretaria-Geral da Justiça, o projecto de monitorização passava por fiscalizar a execução do plano de prevenção da corrupção, elaborado em 2013 com a concordância de Maria Antónia Anes. A responsabilidade pela execução do plano era do dirigente máximo, ao passo que aos dirigentes das unidades orgânicas cabia a responsabilidade de aplicação das medidas preventivas e “de monitorização da sua eficácia”. O relatório frisa que, em 2013, houve uma “sensibilização de todos os trabalhadores da Secretaria-Geral do Ministério da Justiça para as questões da corrupção”. Em Fevereiro de 2014, um quadro frisava os enormes riscos de “favorecimento de interesses pessoais, familiares e políticos” e de “uso de informação privilegiada”. Um ano depois, era a própria secretária-geral da Justiça a ser apanhada no alegado esquema ilegal de atribuição de vistos gold. Está obrigada a permanecer na habitação, com pulseira electrónica.
Escutas telefónicas e mensagens escritas que constam de acórdãos da Relação de Lisboa, e divulgadas pelo i, mostram que, entre outras coisas, Maria Antónia Anes terá manipulado concursos da CReSAP – entidade que selecciona e recruta candidatos para cargos de direcção superior na administração pública. Em conjunto com António Figueiredo, a ex–secretária-geral da Justiça terá chegado mesmo a violar as regras do concurso em que o primeiro era candidato a presidente do IRN e de outro em que colegas seus concorriam ao cargo de vice–presidente daquele instituto.
Coincidência ou não, duas das medidas preventivas implementadas na Secretaria-Geral da Justiça diziam respeito precisamente ao recrutamento: “a nomeação de júris diferenciados para os concursos” e a “utilização de critérios de recrutamento objectivos e precisos, com reduzida margem de discricionariedade”.
Apesar do conhecido desenlace em Novembro de 2014, em Fevereiro desse ano o relatório concluía que “as medidas preventivas previstas no plano” eram “correctas e adequadas” para prevenir os riscos de corrupção e outros crimes conexos. Acrescentava ainda que “tendo em conta os resultados da monitorização do plano”, não havia necessidade de aquele ser revisto.