Tiago Bettencourt. “Irritei muita gente e ser betinho também não ajudou”

Tiago Bettencourt. “Irritei muita gente e ser betinho também não ajudou”


Foi menino do coro, de voz afinadinha, tal como o irmão, mas foi o primeiro baterista dos Toranja quem o picou para cantar as próprias músicas. “Tinha o maior pânico. Não me mandava lá para a frente sozinho”, confessa o músico, hoje a solo, a fazer o que lhe “der na real gana”, graças ao…


O Gonçalo Byrne ainda espera que algum dia termine o estágio de Arquitectura? 

Acho que já não. Tenho muita pena porque sou grande fã do Gonçalo Byrne. Ao mesmo tempo que não tive muita pena porque foi o princípio de tudo. Tinha acabado a faculdade e a ideia de andar aí a fazer concertos até tinha um certo estilo. Foi uma mistura de sentimentos, mas tinha de aproveitar o que se estava a passar com os Toranja.

Falaram depois disso? 
Sim, ele é irmão do marido da prima-direita da minha mãe [risos]. De vez em quando, em jantares de família muito alargada, ainda o vejo. Vi-o numa exposição, falei com ele, tirámos as coisas a limpo.

Foi uma boa decisão? 
Acho que sim. Nunca lhe perguntei o que achou. Sei que a certa altura a filha vinha a uns concertos na queima de Évora. Valeu a pena. Já quando acabei o curso tinha um amigo no quarto ano que me dizia que não tinha nada a ver passar 24 horas por dia fechado num ateliê. Sei que também não estava talhado para aquilo. Não sei se ia ficar ali muito tempo. Talvez fosse fazer outra coisa, fotografia, por exemplo. Toda a parte poética do curso é uma percentagem mínima.

Não sente essa pressão da disciplina em estúdio? 
É poucochinho. Só comecei a gostar de gravar álbuns ao terceiro, quando saí dos Toranja, fui para Monreal, e conheci o Robert Billerd, um produtor canadiano. Usava um processo de gravação um bocadinho diferente do que usa hoje. Não havia um computador nesse primeiro disco que gravámos, foi tudo em fita. Em vez de estarmos à procura da perfeição estamos à procura de um take que consiga transmitir a emoção que queremos. A partir daí comecei a perceber de que maneira ia gostar de estar em estúdio, e tem sido engraçado. Nos primeiros discos com os Toranja não me diverti nada; também não sabia para onde havia de ir. Mas aprendi muito com o João Martins, o produtor. “A Carta” era uma música de dez minutos

Dez minutos? 
Sim, e ele editou aquilo tudo. Aprendi o que era o formato de canção. Éramos uma banda rock quase experimental e de repente ele fez canções sólidas. Foi uma grande lição. Mas o primeiro álbum não reflectia o que éramos ao vivo e as pessoas não percebiam muito bem que banda eram os Toranja. Acho que levámos muito na cabeça por causa disso.

O grupo percebia qual era a identidade? 
Claro que sim. Percebíamos a diferença entre o CD e o espectáculo ao vivo, mas nenhum de nós tinha estado em estúdio antes. O guitarrista passadas umas semanas disse-me que no álbum seguinte tínhamos de arriscar um bocado mais. Pois tínhamos. No segundo álbum já arriscámos. Ficou um bocadinho negro mas tinha a ver com a minha fase de adolescente inconsequente. Faz parte.

Se tivessem arriscado demasiado no primeiro álbum, teriam tido o mesmo sucesso? 
Não sei. Aparecemos quando os Ornatos [Violeta] acabaram. Contribuiu muito para que o público nos recebesse de braços abertos; a imprensa não. Havia muito pouca gente a cantar em português; havia os Clã e pouco mais. As músicas ficaram muito orelhudas. Há determinados truques que podes fazer para ficarem mais redondinhas e chegarem mais longe. Não sei se “A Carta” ia ter menos sucesso se não tivesse os teclados. Mas se calhar não seria o mesmo se tivesse os dez minutos iniciais; era um exagero, uma viagem tipo Velvet Underground. Fez parte. Hoje posso fazer o que me der na real gana sem ter uma editora a dizer que tenho de vender discos.

Consegue ser bom juiz de músicas como “A Carta”? 
Não fazia ideia que ia ser assim. Hoje percebo melhor o que pode ser um single. Neste último álbum percebi desde o início que a “Morena” podia ser single. Já o tinha na minha cabeça. Mas na altura pensava que ia durar um CD e depois ia voltar a ser arquitecto. Entretanto foi uma aprendizagem. Não que componha a pensar num hook, mas de repente a música começa a ganhar forma e penso como pode ir mais longe.

Joga com isso? 
Não sei se me esforço muito para isso, porque gosto muito de canções, que sejam o que devem ser, 
que vão o mais longe possível. Na “Morena” ou em “Aquilo que eu não fiz” podia ter feito coisas que as fizessem vender-se muito mais, ao nível do Tony Carreira. Mas não quero fazer isso, porque quero gostar do resultado final. Há essa fronteira. Tentamos acima de tudo fazer algo diferente, fazer canções mas que sejam um passo à frente. Não tenho o desespero de chegar ao público que me faz vender discos.

O público pode não ser o de Tony Carreira, mas bate recordes no Spotify, e roda muito na rádio. 
Chego a muita gente mas não chego às pessoas que compram discos. Para isso é preciso chegar a um público que não vai à internet, a um Portugal profundo, onde “A Carta” chegou, por exemplo. E a “Morena” não chega. O fado chega, e ainda bem, o Tony chega, nós ainda não chegamos aí. Chegamos a quem gosta de ouvir música mas não compra CD, tem 25 a 45 anos. Mas é o público certo. Não era muito feliz a tocar em festas onde um dia era o Emanuel e no outro dia éramos nós.

Passaram por isso? 
Sim, e foi uma fase um bocado absurda. As pessoas não estavam ali para nos ouvir, mas sim para ouvir o single. Ninguém ligava à rockalhada. Tocávamos “A Carta”, aproximava-se tudo, depois iam-se embora. A certa altura começámos a tocá-lo no início, para combater isso. As pessoas ficavam confusas à espera do resto, a dar uma hipótese. Há um público difícil mas não temos de chegar a toda 
a gente.

O cenário é semelhante em Lisboa e no Interior? 
Acho que sim. A partir do momento em que saí dos Toranja e me juntei com os Mantha começámos a criar um grupo de seguidores que não vão aos concertos só pelos hits. Tivemos a “Canção Simples”, que não foi um grande single. Começaram a procurar outras músicas, mesmo do “Em Fuga”. Ainda hoje há pessoas a descobrir o primeiro álbum. Nos auditórios, no final, faço sempre uma espécie de discos pedidos. Neste último tinha um miúdo a pedir uma música que ninguém conhece, do “Jardim”.

Já não estranham projectos como o Tiago na Toca. 
Não, tenho pena porque só fiz três concertos desse CD. Ainda pedem muito algumas coisas. Tinha um público um bocado específico, não sei bem quem ouviu. Ainda aparece gente para assinar o livrinho do CD.

Dizia uma vez que havia gente que ainda não tinha dado conta do fim dos Toranja. Ainda acontece? 
Já não. Aconteceu nos primeiros dois anos a seguir. Sou capaz de ouvir na rua “Olha o gajo dos Toranja”, mas de resto não.

Pedem-vos sempre os singles antigos? 
Mais ou menos. “A Carta” sim, o “Laços” também . Deixámos de tocar o “Cenário” porque as pessoas já não reconheciam. Hoje sinto que reconhecem muito mais temas recentes. É preciso tocar as mais antigas, porque as pessoas também lá vão para as ouvir. Uma vez fizemos um concerto no São Jorge e não tocámos “A Carta”. Ninguém a pediu. No fundo foi  uma experiência [risos], mas também foi a única. Depois também me senti um menino birrento, porque a música não é só minha e merecem ouvi-la. É sempre um momento alto do concerto.

Como foi o primeiro concerto com os Toranja? 
Foi no Garage. Tínhamos ganho um concurso, o Super Novas Bandas, do festival Super Rock. Cinco iam tocar ao Porto e cinco ao Garage. Tínhamos gravado uma maqueta e o baterista mandou aquilo às escondidas e pôs o nome Toranja, também às escondidas, porque eu não gostava, e fomos um dos vencedores. Tínhamos imensos amigos em cima do palco e lá em baixo. Se calhar impressionou as editoras que lá estavam porque tivemos logo propostas para gravar. Éramos os únicos a cantar em português.

Os fãs questionam-no muito sobre as entrelinhas das letras? Quem é a morena, quem é a Maria, etc.? 
Sim, neste último perguntam-me. Sei lá… digo a verdade. Fui para o Google procurar nomes, é tudo um bocado fictício. Só uma pessoa que está ali existe e não se chama Maria [risos]. Foi ela que deu o mote para a coisa. A certa altura aparecem Marias a dizer “olá, sou a Maria”, e morenas também. Mas já ninguém quer saber da minha vida, graças a Deus. Grande parte das músicas ganham a certa altura um lado de ficção grande. A “Morena” inicialmente nem tinha refrão. Quando escrevo, a poética acrescenta–lhe sempre um romantismo exagerado. Tento sempre esconder esse lado mais pessoal mas a história também ganha uma certa curva.

Tem a hipótese de a reescrever. 
Exacto. Posso inventar o que quiser. Posso falar de amigos. É muito mais divertido interpretarem, e as pessoas terem as suas vidas dentro das minhas músicas.

As pessoas chegadas conhecem as histórias? 
Isso sabem, sim. Conto as histórias.

Guarda a primeira viola? 
Tenho-a, mas já não a uso. Partiu-se. Era daquelas clássicas, de nylon, que os miúdos têm. A segunda já era de aço, que tem mais a ver com este estilo, com os Unplugged dos anos 90 da MTV, com aquele lado acústico.

Era o que se ouvia em Coimbra? 
Só nasci lá, por tradição. Vivi na Parede até aos oito, nove anos, depois São João do Estoril, até vir para Lisboa aos 22, 23, logo que tive dinheiro.

Aí já com a música? 
Sim, percebei que conseguia aguentar-me pelo menos por um ano e arrisquei. Sou um bocado um produto dos anos 90 e vivo feliz com isso, quando vejo esta década muito plástica em termos de música. Contas pelos dedos os artistas que fazem música pelas razões certas. Nesse tempo tinhas Nirvana no top, hoje tens Miley Cyrus. Ouves hoje os primeiros discos dos Smashing Pumpkins e eram geniais. Se os miúdos forem ouvir o que se fez para trás, é fácil perceberem que o que se faz hoje é a imitação da imitação. Os roqueiros já não são roqueiros, são miúdos vestidos de rock pela editora. Mas um bom presságio foi o Beck ter ganho o Grammy de melhor álbum.

Que muita gente não sabia quem era. 
Sim, ficou tudo espantado. Tem um álbum genial. Usei muita coisa dele neste último álbum, em termos de efeitos, de produção. É incrível, fiquei muito contente. Ganhou ao Ed Sheeran, que é bom mas também é muito plástico. Lá está, tem a ver com a tal fronteira, o ponto até onde estás disposto a ir. Ele podia ficar um bocadinho mais atrás e ser incrível à mesma. Tudo é cíclico.

Há miúdos hoje com 20 anos que também o ouvirão. 
Acho que sim, mas acho que há muita gente a ouvir muito boa música. Mas lá está, o que a maioria da TV e da rádio dão é o que está na moda. É a Kizomba agora, o tempo todo.

Espera conseguir manter-se à margem das modas? 
Acho que sou um sortudo no mundo da música. Consigo viver disto, mas olho à minha volta e vejo bandas portuguesas muito boas que sei que não vivem nada bem e que têm de ter trabalhos paralelos. A TV não os chama, não têm a imagem que precisamos de ter, não são produtos. Essa liberdade paga-se caro. Não há muita gente a fazer o que lhe apetece na música. Fazer boa música é difícil, sai caro. Tens seguidores, mas não chega. Temos esgotado as salas todas mas já apanhei vários concertos vazios. Bom, se calhar não [risos]. Talvez mais no princípio, quando fizemos uma digressão com os Los Hermanos, que ninguém conhecia cá. Fizemos alguns concertos quase vazios. Eu ia ver os concertos deles para a bancada. Mas tem corrido muito bem.

“Não sou um rebelde, sou um betinho.” Como foi gerir essa imagem? 
Claro que foi um obstáculo. Os Flor Caveira tornaram ser baptista e ser religioso muito cool, e a imprensa adorou. O Manuel Fúria também usou isso bem, da parte católica, e da parte betinha, e também tornou essa cena cool. Acho que não consegui fazer a coisa muito bem. Mal comecei a imprensa odiou-me porque não era a imagem que queriam. Gostam de pessoal que batalha um bocadinho mais do que batalhei, a verdade é que fui músico por acaso. Fiz umas musiquinhas e foi um sucesso; o trabalho veio a seguir. Irritou muita gente e ser betinho também não ajudou. Quer dizer, betinho… betinho renegado. Nunca fui feliz a ser betinho. Brinco um bocado com isso.

Acedeu a mudar um bocado? 
No segundo disco queria muito agradar à imprensa que não gostava de mim. No fundo eram pessoas que gostavam da mesma música que eu, e não percebia porque não gostavam de mim. Era uma embirração pessoal estranha. Fizeram uma crítica a um concerto no topo dos Toranja e depois percebemos que não tinham lá estado.

Mas por ouvirem Nirvana podem não ouvir Tiago Bettencourt. O Kurt Cobain gostaria de o ouvir? 
Não faço ideia. Do primeiro CD não. Mas também não fazemos a mesma coisa que eles. Gostava que o Eddie Vedder gostasse, que o Steven Tyler também, o Billy Corgan. Kurt Cobain já é pedir de mais [risos]. Acho que ele não ia ouvir “A Carta”. Hoje nas bandas que começam e são acarinhados vejo que o segundo álbum é sempre mais dark, e há artistas que perdem uma certa genuinidade porque a imprensa puxa para aquele lado em que as músicas passam a ser inaudíveis. Só meia dúzia de pessoas vão aos concertos mas é muito cool.

Ainda se esforça por agradar? 
Não, hoje estou-me completamente a marimbar. Não é esse tipo de público que me interessa. Gosto que os meus amigos me ouçam, que as pessoas venham ter comigo na rua, que me conheçam não por ter aparecido uma vez na televisão mas pelo que faço. Dá mais gozo que ter um gajo a pôr-me rótulos por cada disco que faço.

Cruza-se muito com a sua música? 
De vez em quando, na rádio, mas não fico a ouvir. Sou mais capaz de ir ao Spotify e ouvir o disco do princípio ao fim do que de ouvir na rádio.

Aqueles números do Spotify também se devem a si. 
Sim, é capaz [risos]. Gosto de relembrar, de dar atenção aos arranjos, de encontrar defeitos. Estou ansioso por conseguir ouvir este álbum como se não fosse meu. Se calhar daqui a um ano.