Juan Pablo Escobar. “Jamais entregaria o meu pai”

Juan Pablo Escobar. “Jamais entregaria o meu pai”


Em livro, o arquitecto recorda o lado íntimo da lenda colombiana do narcotráfico, tão “generoso quanto perigoso”.


Um dia perguntaram-lhe se era maior que Al Capone. “Acho que tenho mais três centímetros que ele”, respondeu Pablo Emilio, com 1,67 cm de altura e um rasto quilométrico de sangue pelo caminho.

Juan teria a altura média de um rapaz de nove anos quando lhe ofereceram as cartas de amor originais que Manuelita Sáenz escreveu ao libertador Simón Bolívar, preciosidade que qualquer miúdo trocaria por duas rodas.

Aos 11, tudo resolvido – já tinha uma colecção de 30 motos. “O Meu Pai” é o retrato íntimo da lenda colombiana do narcotráfico, que demorava horas no banho, usava sempre o mesmo pente, mantinha a camisa abotoada a meio do peito, gostava do ritmo das orquestras e guiava um Porsche comprado a Fittipaldi.

No seu quartel-general, a colossal Herdade Nápoles, ao estilo de “Neverland”, ergueu um zoo, uma bomba de gasolina, cem mil árvores de fruto, um parque jurássico à escala real e uma pista de aviação com 1000 metros de extensão. Nas festas familiares rifavam-se obras de arte, os chocolates vinham da Suíça; os bordados, de Veneza; a pólvora, da China; e o vencedor do torneio de ténis recebia um carro. O filho do vigilante do bairro, que começou a contrabandear Marlboro, acumulou uma fortuna incalculável e fintou tudo e todos até se evadir da prisão La Catedral. “A mim nunca me hão–de apanhar vivo”. Assim foi, há 21 anos num telhado de Medellín, cercado pelos inimigos.

Viu todos os filmes de crime com o seu pai, ao estilo Bonnie & Clyde. Nessa altura já imaginava que ele poderia dar um filme maior que todos esses?

Sabia que a vida do meu pai transcendia uma vida normal. Claramente, ao ver as notícias, os media, sempre pensámos que se podia converter, ou que já era em vida, uma personagem de um filme.

Até um miúdo conseguia ver isso?
Sim, e não apenas eu. Muita gente já o descrevia como uma celebridade. Sempre foi o meu pai, o meu amigo. Primeiro, meu amigo, depois meu pai. Não era um ídolo, era um grande amigo.

Era fácil separar a ideia do pai da figura de Pablo?
Nem sempre. Foi uma aprendizagem, com o tempo, que tinha de conviver com a realidade, que em casa o meu pai era um bom pai e que, fora, era um bandido.

Quando se apercebe pela primeira vez de que era um bandido?
Quando o próprio me disse. Nunca me ocultou a sua escolha de vida: a sua profissão era bandido. Não houve um dia específico, foi há muito tempo, mas muitas vezes me falava disso.

Como reage uma criança que, na escola, tem de explicar o que fazem os pais?
Perguntava-lhe: “O que ponho quando me perguntarem o que fazes?” Ele dizia para pôr comerciante, sem especificar em quê. Era o que fazia.

E que diziam os seus colegas?
Não tinha muitos amigos. Pouco a pouco, os pais foram dizendo aos filhos para não se darem comigo. Teria um ou dois amigos num colégio com dois mil alunos.

Restavam-lhe os filhos dos amigos do seu pai?
Exactamente. Mas só se aproximavam do meu pai quando queriam fazer negócios com ele, não para conviver ou desfrutar a vida. Só para fazer dinheiro.

Não teve uma infância normal. Conseguiu que fosse feliz?
Como sabê-lo? É difícil avaliar. Desfrutei enquanto era criança. Nessa altura não questionamos nada, simplesmente vivemos a vida tal como ela nos é apresentada. Até aos sete anos, pelo menos, nunca experimentei situações complicadas. Em 84 morre o ministro da Justiça, Rodrigo Lara Bonillo, e a vida da nossa família mudou para sempre. Nunca mais foi a mesma. Vivemos na clandestinidade. Desfrutei como qualquer criança, a diferença é que eu tinha mais brinquedos que os outros. Mas o meu pai escrevia-me a dizer que tinha de aprender a ser feliz, mesmo que não tivesse nada. Porque, quando fora criança, não tinha nada e fora feliz.
Fala da vida de clandestinidade no livro e de como Pablo tinha a mania de lavar muito os dentes. “Na clandestinidade nunca sabes quando irás a um dentista.”Sim, dizia-me sempre isso. Tu podes ir a um dentista e eu não. Só ele cortava o cabelo ou a minha mãe.

A sua mãe, que foi avisada, antes de casar: “Estás disposta a levar comida à prisão ao Pablo toda a tua vida?”
E foi o que sempre cumpriu. Era o amor da sua vida. E no amor ninguém pode ser questionado. Ela casou-se com Pablo Escobar, não como o conhecemos hoje, mas quando era apenas o filho do vigilante do bairro. O amor foi genuíno.

Apesar de partilhar que ele nunca lhe foi fiel.

Ah, nunca. É um problema que nós, colombianos, temos [risos]. Quase todos.

Como vêem os colombianos a figura de Escobar?
Depende da pessoa. A maioria do país é pobre, e os pobres adoram o meu pai. A riqueza do país está concentrada em apenas 3% das famílias, e essas famílias têm muito poder e odeiam o meu pai, que lhes provocou danos. Questionou-os, dividiu-os, corrompeu-os. Esses 3% formam a opinião geral na Colômbia, detêm os media; os outros são pobres…

Chamavam-no Robin dos Bosques.
Sim, têm essa recordação. Eu próprio não penso que o meu pai tenha sido exclusivamente bom e exclusivamente mau, penso que foi uma mescla de extremos, tanto na bondade como na maldade. Era um homem extremamente generoso e perigoso. Tinha de ver os dois lados. Se visse apenas um, não veria tudo à minha volta.
O livro foi recebido com alguma dificuldade na Colômbia.
Devo dizer que esperava uma reacção generalizada contra o livro. E gostava que assim tivesse sido. Mas houve menos controvérsia do que o esperado, porque o silêncio prevaleceu.

Porquê?
Por dois motivos. Primeiro, porque as verdades que o livro revela são difíceis de refutar. Depois, porque nada vai mudar na Colômbia, vai continuar a ser muito parecida em muitos aspectos, como na corrupção, ao que já era antes. Este é um livro que não vai mudar nada lá, talvez sim noutras partes do mundo.

Que mudou na Colômbia em duas décadas?
Está diferente, melhor como país, tem um bom futuro. No tempo do meu pai, a Colômbia não tinha futuro. Sou um optimista. Estamos fartos da guerra, queremos a paz, e o povo está disposto a fazê–la. Mas esses 3% vão continuar a ser donos do país.

É curioso que o seu pai vivia num bairro chamado La Paz.
Sim, entendeu tudo ao contrário

E começou por vender lápides.
Roubava-as, tratava-as e vendia-as como novas. Vendeu diplomas, roubou o carro do bispo… mas devolveu-o.

Como era viver no meio de tanta excentricidade?
São muito maus exemplos. Tinha tudo para me portar muito mal, a julgar por estes exemplos. Entendi que não devia segui-los, e o meu pai nunca me incentivou a seguir os seus passos. Mas se lhe tivesse dito que queria segui-lo, tenho a certeza de que me teria apoiado. Mas dizia-me sempre que, se eu quisesse ser médico, me arranjaria o melhor hospital; se quisesse ser cabeleireiro, conseguiria o melhor salão de beleza.

Nunca pensou seguir os seus passos?
Não, nunca senti essa necessidade. Era muito jovem, tinha 16 anos quando ele morreu. Nasci num sítio onde nunca faltou o amor, onde a família esteve sempre presente. E nunca senti que o meu pai quisesse que eu fosse como ele, mas lá está, também nunca me condicionou. Sempre respeitou a minha liberdade para decidir.

Imagina-o no mundo de hoje, se não tivesse morrido?
Se ele estivesse vivo, eu e o resto da família estaríamos mortos. Era ele ou nós. Ele deu a vida pela família inteira. Não havia lugar para todos.

Defende que se suicidou no telhado do centro comercial Obelisco, em Medellín, ao contrário da teoria de que foi morto.
Não só acredito nisso como estou certo de que assim foi, por várias razões. Os médicos forenses que analisaram a autópsia informaram a família que a verdadeira causa de morte tinha sido o suicídio; o tiro no ouvido que determinou a sua morte foi no exacto lugar onde o meu pai, toda a sua vida, me disse que daria um tiro, se quisesse morrer de uma vez. Finalmente, há outro detalhe. O meu pai sempre me disse: nunca uses o telefone, porque é a morte.

Queria ser encurralado?
Totalmente. Ele quis ser localizado, e por isso usou para chegar à morte o meio que sempre me pediu para evitar: o telefone. Ligou-me mais de cinco vezes no hotel, mais tempo do que o necessário. Como é possível que um homem que durante uma década conseguiu fugir da polícia do mundo inteiro, dos mercenários, dos cartéis inimigos, e justamente no dia em que a sua família está reunida, sob guarda – não protegida de verdade, porque senão punham-nos no exílio –, seja caçado? Tinha de escolher: a família ou ele. Foi essa a mensagem que lhe chegou. Tratou de tudo para morrer nesse dia, daí que as fotos da sua morte mostrem um homem descalço. A primeira coisa que faz o homem mais procurado do mundo, rastreado nas suas comunicações, é calçar-se. Se não quer escapar, não precisa de se calçar.

Sabia que seria a última pessoa com quem falaria?
Sim, e assim foi. Desliguei muitas vezes o telefone, sabia que ele queria que isso acontecesse. Não conseguia pensar que queria morrer nesse dia. Estávamos num stresse enorme, tínhamos a casa cheia de generais, tínhamos chegado da Alemanha. Mas sim, eu estava consciente das suas lições de vida. Se o telefone é a morte, por que raio me está a ligar? Tinha várias alternativas. Quis matar-se na presença dos seus inimigos.

Era uma das poucas pessoas em quem podia confiar?
Não tenho dúvidas de que era a pessoa em quem mais confiava. Tenho cartas do último ano de vida do meu pai, de amor e de amizade. Numa delas diz que sou o seu melhor e único amigo. Honrarei esse amor e essa amizade até ao fim dos meus dias. Posso estar contra a violência que o meu pai gerou, mas jamais o entregaria. Primeiro sou leal ao meu pai, depois a outro qualquer.

Quando sentiu que era hora de escrever este livro?
Quando todos já haviam falado, e nada faltava dizer ou inventar sobre a vida do meu pai. Família, amigos, inimigos… Passaram 21 anos, e muitas das pessoas envolvidas já morreram, outras estão presas, perderam o seu poder. Por isso me atrevo a contar a história. Sei que estou a violar as ameaças que nos fizeram e, por isso, entendo que não posso voltar à Colômbia.

Mas chegou a voltar.
Sim, 14 anos depois da sua morte, para terminar o documentário sobre o meu pai. Depois regressei em passeio, para ver a família, umas semanas. Depois da publicação do livro, algumas pessoas do submundo que sentem ainda carinho pela nossa família recomendaram-me que não voltasse, por uma questão de segurança.

Ainda receia as ameaças, mesmo fora do seu país?
Já não me importam. Cuido-me porque tenho um filho mas, se quiserem matar–me, aqui estou. Não vou fugir de nada. Já tive várias reuniões com a morte, e ela ainda não apareceu.

Por exemplo?
Recordo-me de várias vezes. A reunião com o cartel de Calli… sabia que me iam matar, à minha mãe. Fomos juntos. E aqui estamos.

Que peso tem o seu apelido hoje? É um fardo?
Sim, sobretudo na Colômbia, e nos EUA. Não tenho visa sequer.

Ironicamente, o seu pai tinha um American Express.
É, nem de propósito, para que não pensem que tudo é tão bonito como pintam. São cúmplices. Ajudaram-no a criar o império que criou, depois quiseram destruí-lo. O império do meu pai foi criação dele e de outros. Para dar exemplo do preconceito, em Bogotá, alguns hotéis não me aceitam. Não fiz nada, não pus lá bombas. Também há coisas positivas. Por exemplo, quando viajo na companhia Avianca – o meu pai deitou abaixo um dos seus aviões –, poderiam maltratar-me, e sabe que, às vezes, passam-me para a primeira classe. Nem toda a gente tem o desejo de vingar a violência, nem é desrespeituosa. Sim, há algumas empresas e governos que o fazem, mas só posso lamentá-lo.

Costuma tirar vantagem do seu apelido?
Nunca falo dele.

Mas reconhecem-no, e apresentando obras destas é natural que se apresente como Juan Pablo Escobar.
Sim, e por isso me põem às vezes na primeira classe. Mas não aceito, e não ficam muito contentes [risos]. Nunca me veria a identificar-me como “sou o filho de Pablo Escobar”. Não me incomoda ser filho dele, mas sim identificar-me como filho dele. Tenho uma conferência em breve no México e tive de reclamar à organização. Terá vários oradores, e cada um é apresentado segundo o que faz: presidente, desportista, procurador, etc. A mim puseram-me como “filho de Pablo Escobar”. Não é um título. Sou arquitecto. Se o seu pai fosse um mafioso, também a julgariam por isso.

Mudar de nome, em 1994, era inevitável?
Salvou a nossa vida mas, mais que a nossa vida, salvou-nos do preconceito da sociedade. Não é uma renúncia ao parentesco, é uma ferramenta para salvar a vida. Não renego o meu pai, renego o preconceito em que caímos, na sociedade que não vendia passagens para viajar a alguém que não era perseguido, como nós. Não sou um delinquente, não há nenhuma ordem de busca internacional. A nova identidade permitiu-nos uma nova vida e podermos deixar que os outros nos conheçam como pessoas, sem opiniões formadas. Vejo possibilidades de cometer delitos a cada minuto da minha vida. Há sempre oportunidade, mas rejeitei-as todas. Penso no que quero para mim e a minha família. Não quero deixar ao meu filho um legado de violência como o meu pai me deixou. Não estou para destruir o que me custou tanto a reconstruir. Há 21 anos que cumpro a promessa de não vingar a morte do meu pai. Isso não é pouco para mim. Há 21 anos que tenho a oportunidade de o fazer e digo que não.

Ainda pensa nisso?
Claro que sim, todos os dias. Levanto–me e penso se hoje vou fazer ou não, mas está controlado. É uma possibilidade que te assiste diariamente.

Como funciona hoje a gigantesca propriedade Nápoles, onde viveram?
É hoje um estranho museu, um parque de diversões. Os políticos apoderaram- 
-se da propriedade, roubaram-na às vítimas. Aconteceu com todas as outras propriedades, o que deslegitima a moral do Estado. Torna-o tão mafioso ou pior que o pior dos mafiosos. Os bens que tiraram ao meu pai não serviram para reparar danos, apenas para provocar mais danos. As vítimas foram vítimas duplamente. Do meu pai e de quem não as recompensou.

Conserva apenas um relógio do seu pai?
Sim, é o único bem material. O resto foi tudo destruído. E os que as autoridades não conheciam, conheciam os inimigos do meu pai. Porque antes de serem inimigos, tinham sido seus amigos e sócios. Quiseram matá-lo quando já não havia mais uma gota a espremer. A mensagem era muito clara: se escondes alguma coisa, matamos-te. Hoje estou muito agradecido por nos terem tirado tudo. Tiraram-me um peso de cima e a possibilidade de cair na ambição do poder.

A fortuna de Pablo Escobar era inestimável. Dizia mesmo: “Um dia cheguei a ter tanto dinheiro que lhe perdi a conta. Assim que soube que era uma máquina a produzi-lo, deixei de me preocupar em contá-lo.”
Não sabíamos quanto era, não havia inventário. Só houve forma de saber no dia em que chegou a ordem de reunir as propriedades e fazer uma entrega oficial: das obras de arte, veículos, casas, lojas, helicópteros. Mas nunca sabíamos bem. Às vezes pensava que havia erros. Imagina uma propriedade de 100 mil hectares. Pensava que não podia ser, isso é o tamanho de uma região inteira. Mas era verdade. Sobrava muito pouco dinheiro; o meu pai gastou-o todo a guerrear. E como era generoso a pagar algum serviço, não tinha problemas em dar mais do que a conta.

Disse que desfrutou como qualquer criança, com a diferença de que cresceu rodeado de helicópteros, um zoo, canhões na piscina, limusinas. E Pablo, o homem que tinha tudo, desfrutou do tudo que teve?
Era como crescer na Disney. Era parte de uma fantasia que não pensava que ia acabar tão depressa. Éramos miúdos e não sentia que estava a viver algo irreal. Os elefantes não eram de plástico, eram verdadeiros. Brinquei com a espada de Simón Bolívar, nem lhe dei grande valor. Que miúdo dá valor aquilo? Preferia uma mota, um jogo qualquer. Não tinha consciência do valor das coisas. Mas chego à conclusão aterradora de que o meu pai só desfrutou dez minutos da sua vida. Morreu aos 44 anos, fez fortuna em 1980 e em 84 já estava metido em problemas.

Pelo que conta, ensinou-o mais a evitar problemas que a meter-se neles.
Lembro-me de partilhar as coisas, de nos pôr a dormir, de contar histórias a mim e à minha irmã, de caminhar comigo pela selva, ensinando-nos a sobreviver. Esta planta é venenosa, esta é nutritiva, estas formigas servem para comer, se te perderes… Isso não se esquece. Qualquer dia, se for preciso, comemos formigas.