Sócrates gastava quatro vezes mais do que ganhava como primeiro-ministro

Sócrates gastava quatro vezes mais do que ganhava como primeiro-ministro


Empresário amigo de Sócrates admitiu destruição de provas. “Não é credível se não estivesse garantido com uma fonte de sobrevivência”.


Relação de Lisboa arrasa tese da amizade, fala de um património oculto e pergunta como alguém que nem tinha poupanças poderia gastar 24 500 euros por mês.

Afinal, não terá sido só José Sócrates a destruir provas depois de tomar conhecimento de que estava a ser investigado.

Carlos Santos Silva admitiu durante o interrogatório do juiz Carlos Alexandre ter destruído os documentos onde registava as entregas de dinheiro feitas ao ex-primeiro-ministro. E mais: o Ministério Público (MP) concluiu que depois da notícia da “Sábado”, de Julho de 2014, Santos Silva “chamou alguns colabores chegados e tratou de dispersar a posse dos documentos relativos” a José Sócrates “que até então tinha consigo”. Terá sido por essa altura que os registos dos empréstimos concedidos em numerário terão sido destruídos.

“Não só não é verdade que toda a prova esteja recolhida porque o arguido destruiu e deslocou para parte incerta alguma dela”, invoca o MP nos fundamentos enviados à Relação de Lisboa em resposta a um recurso de Santos Silva.

Se os 23 milhões de Santos Silva eram, na verdade, de José Sócrates, por que razão o empresário guardava informação sobre os montantes entregues? Para os juízes da Relação de Lisboa, que decidiram manter o empresário amigo de Sócrates em prisão preventiva, a justificação pode ser tão simples quanto esta: uma parte do dinheiro acumulado por Santos Silva no estrangeiro, e proveniente das contas de administradores do grupo Lena, seria sua, e outra parte de José Sócrates.

“Irreleva ao caso o conhecimento da quota de casa um, que não tinha nem tem, sequer, que estar determinada – se bem que a confessada destruição dos documentos detidos” por Santos Silva “relativos à parte fornecida” a José Sócrates “indicia que pudesse estar”, diz o acórdão da Relação de Lisboa de revisão das medidas de coacção de Santos Silva, a que o i teve acesso.

O tribunal superior também não acredita na tese de que as transferências feitas pelos responsáveis do grupo Lena para as contas suíças de Santos Silva eram “prémios”. Se Santos Silva foi administrador de empresas do grupo Lena até finais de Agosto de 2009, e se aquelas transferências foram feitas, como admitiu, entre 2007 e 2009, os juízes não encontram  outra justificação para aqueles pagamentos que não a sua origem ilícita. “Ainda que se entendesse que a sua intervenção extravasara os limites da diligência devida no exercício da sua função de administração, o recorrente, por um lado, e o grupo, por outro, dispunham de toda uma panóplia de justificativos legais possíveis para a atribuição de uma remuneração extra, com o inerente suporte documental.” Mesmo que Santos Silva já não fosse administrador, tendo continuado a prestar serviços ao grupo Lena, “nada obstava – e a lei impunha – à escrituração dos valores transferidos, ainda que a título de ‘luvas’ o fossem”. 

Os juízes desembargadores encontraram fortes indícios de que o acervo financeiro que Santos Silva constituiu no estrangeiro deriva de “atribuições patrimoniais injustificadas” que visavam “o enriquecimento indevido” do empresário e do amigo José Sócrates. Só assim explicam todo o secretismo montado em torno do dinheiro entregue ao ex-primeiro-ministro. “Só mediante o conhecimento mútuo dessa origem ilícita do capital, que foi sendo distribuído pelo recorrente ao co-arguido Pinto de Sousa, se pode lograr racional para o secretismo que este último quis manter sobre o facto de as suas disponibilidades líquidas lhe advirem das contas do recorrente – secretismo que implicava um incómodo permanente do recorrente (frequentemente enredado, e com exigência de prontidão, em conversas, pouco lógicas e algo cifradas, em levantamentos e em entregas/transferências de dinheiro) inaceitável para um homem cuja actividade e responsabilidades empresariais lhe exigem, notoriamente, permanente dedicação.”

Por que motivo, interroga a Relação de Lisboa, “um ex-primeiro-ministro haveria de tratar da parte económica da sua vida pessoal por intermédio de outrem que, claramente, tem mais o que fazer?” A tese do pudor não colhe frutos junto dos desembargadores. “Se assim fosse, maior seria a humilhação decorrente do conhecimento público do recebimento de proventos por transferências bancárias emergentes na conta do seu motorista.” E a tese da amizade sem limites, ou de que “a lei não estabelece limites para a amizade”, como invocou Paula Lourenço, advogada de defesa de Santos Silva, também não. “Só a execução de um esquema de ocultação da origem da liquidez à disposição do co-arguido Pinto de Sousa justifica que, havendo entre ele e o recorrente fortes laços de amizade, aquele dispusesse da sua pessoa para entregar o dinheiro vivo, que lhe era destinado, ao seu motorista. De outro modo, mais do que a determinação de um permanente incómodo, ter-se-ia entrado no campo da desconsideração pessoal que colidiria com a manutenção desses fortes laços. 

Laços de amizade, na perspectiva da Relação de Lisboa, não são “justificação para a quase subserviência” de Santos Silva em relação a Sócrates. Se o património imobiliário – por exemplo o apartamento de Paris – era seu, “fica por justificar as permanentes pressões a que foi sujeito” por Sócrates sobre “os tempos das obras”, a “escolha dos materiais para decoração” e a “disponilização a terceiros” daquela casa. Avaliar as suspeitas de corrupção obriga ainda, na perspectiva dos juízes, a analisar o património conhecido de Sócrates, que desempenhou, em exclusividade, o cargo de primeiro-ministro durante seis anos, remunerado com um salário bruto na ordem dos 6 mil euros mensais, não tendo acumulado economias em seu nome e tendo apenas conseguido depois de abandonar o governo uma fonte de rendimento de 12500 euros mensais por parte da farmacêutica Octapharma.

“Não é credível, numa perspectiva de experiência comum, que gastasse mais de 500 mil euros, emprestados, só em despesas correntes (que incluem ofertas a terceiros, como é o caso da despesa de alojamento em Paris do filho de um amigo seu) em apenas três anos e meio (num valor médio de 11900 euros mensais ao qual há que somar os 12 mil e 500 euros [da Octapharma] auferidos e indiciariamente gastos) se não estivesse garantido com uma fonte de sobrevivência actual e/ou futura que lhe permitisse, pelo menos, a manutenção de um semelhante nível de vida”, diz o acórdão assinado pela relatora Maria da Graça Santos Silva.

A Relação de Lisboa frisa que se o acordo entre os dois amigos da Covilhã era para um empréstimo de 500 mil euros esse já estava mais do que esgotado. Sublinha ainda que às despesas correntes de Sócrates havia ainda que somar-se os valores dos negócios que tinha em mente, como o caso da compra do Terreno em Tavira, “pressupostamente a meias” com o empresário, e avaliado em 900 mil euros. “Em suma: o nível de gastos” de Sócrates “não se compatibiliza com a assumida falta de dinheiro em nome próprio”. “E menos se compatibiliza com a manutenção do estatuto económico que a função de primeiro-ministro concedeu porque está bem acima dos valores pelos quais o exercício do cargo era remunerado.”

De acordo com a prova recolhida pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), Sócrates gastava em média, por mês, quatro vezes mais do que ganhava como primeiro-ministro. “Indicia-se a necessária existência de um património oculto, que o recorrente [Santos Silva] esconde e que o efectivo proprietário [Sócrates] não justifica”, dizem os desembargadores, que concluíram ser suficientemente fortes os indícios de que Santos Silva terá cometido dois crimes de corrupção activa, actuando enquanto “agente do grupo Lena, corruptor” e “enquanto veículo de transmissão de um património conjunto de origem em doações feitas pelo grupo Lena beneficiário de atenções” de José Sócrates enquanto primeiro-ministro.

“Transparece a existência de um avultado património, sem causa, propriedade de titular de cargo público, com origem em liberalidades tomadas por representantes de sociedades objectos de especiais atenções por parte do referido funcionário” que, “em exercício de funções”, “escondido sob a titularidade” de Santos Silva terá feito circular dinheiro “através de circuitos sofisticados”. 

Pelo menos 11 juízes – entre Carlos Alexandre, os dois desembargadores que analisaram o recurso sobre as medidas de coacção de Sócrates, os outros dois desembargadores que analisaram este recurso de Santos Silva, e os seis juízes conselheiros que analisaram os pedidos de habeas corpus – já mandaram abaixo até ao momento a versão apresentada pelas defesas do ex-primeiro-ministro e do empresário ex-administrador do grupo Lena.